quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

A farinha de mandioca na economia baiana: um comentário do quinto capítulo do livro "Um Contraponto Baiano".



BADARÓ, Wilson Oliveira.
w_o_b@hotmail.com

Ø  Obra onde consta o texto selecionado:
BARICKMAN, B. J. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780-1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.[1]
Ø  Capítulo trabalhado:
BARICKMAN, B. J. A farinha de Mandioca – o pão da terra – e seu mercado. In: BARICKMAN, B. J. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no recôncavo, 1780-1860. pp. 89-127.[2]

A economia interna do Brasil na Bahia durante o período colonial.

O autor Bert Barickman apresenta um forte viés para a análise social e econômica no texto aqui abordado, contudo, deixa transparecer elementos políticos – relações de poder –, e antropológicos à medida que faz uma leitura destes alcances da relação de poder estabelecida entre senhores e escravos na obtenção, uso e disponibilização da ração. Elementos estes que permeiam o seu objeto e a relação dele com o contexto histórico em questão, partindo dos fenômenos observados em uma escala menor, mas que está conectada a uma realidade maior que é a de todo o país no período colonial, claro, considerando a diversidade cultural aí presente.
Assim, Barickman inicia a sua abordagem ao tema proposto a partir de uma leitura das deficiências alimentares do período colonial, ou seja, tratando da dieta que sustentava o mecanismo agroexportador e o mantinha ativo, contudo, Barickman apontará para a problemática da historiografia brasileira clássica que não enxergava o que foi apontado em Fragoso[3] como mecanismo permissionário do funcionamento do sistema agroexportador – o mercado interno e sua significante produção. Assim, Barickman tratará de apresentar alguns produtos que tinham esta função como o café e o açúcar que visavam suprir as demandas por produtos de primeira necessidade pois, “todos precisavam comer” (BARICKMAN, 2003, p. 89), mas, aqui, em nosso caso, o produto é a farinha de mandioca.
Assim sendo, o principal ponto de construção deste capítulo se deterá sobre os conflitos e o caráter complementar entre o mercado interno – de subsistência – e o mercado tido como dominante – agroexportador. O autor ainda deixa evidente que o seu foco será a investigação das facetas destas relações conflituosas a partir do “mercado regional da farinha de mandioca [pois] (...) sobre nenhum outro gênero alimentício, exceto talvez a carne verde, há tanta documentação” (BARICKMAN, 2003, p. 89) deixando claro que o que viabilizou em definitivo o seu objeto de pesquisa foi a abundante quantidade de fontes acerca de seu objeto.
Dito isto, o autor começa a expor a relevância da mandioca para a manutenção da vida, economia, manutenção das forças produtivas e modos de produção que garantem a subsistência local e também a reprodução da economia agroexportadora no interior do recôncavo e capital baiana - Salvador. Afirmamos isto baseados na assertória do autor que diz que a farinha era de fato o elemento mais presente na dieta baiana e sobretudo, o gênero agrícola com fins alimentícios mais cultivado nesta região. O autor reconhece e expõe que havia, guardadas as devidas proporções, uma variedade gastronômica considerável. Contudo, a farinha se constituía como a base mais sólida e aclamada da nutrição da população baiana, uma vez que o autor considera que “a maior parte das calorias vem de um alimento principal e rico em amido; na Bahia, esse alimento era sem dúvida a farinha de mandioca.” (BARICKMAN, 2003, p. 91).
Como um dos vieses de análise deste capítulo se debruça sobre as incidências econômicas, nota-se que o autor, baseado em fontes que lhe permitem quantificar (registros do Celeiro Público de Salvador) irá demonstrar o quão soberana era a farinha de mandioca nos depósitos da cidade, refletindo aí, a sua importância para a sociedade em questão.
Partindo desta predominância e predileção regional no uso popular e generalizado da farinha de mandioca no recôncavo, o autor aborda as diversas formas, alcances e instâncias de seu uso nas diferentes esferas da população baiana. Ele apresenta a farinha de mandioca como sendo a base da ração diária de presidiários, escravos, soldados em Salvador, já na área rural, servia de ração para escravos de fazendas e engenhos e aqui, ele revela como a farinha, usada como ração, poderia determinar através das quantidades e qualidades de sua concessão, o padrão e expectativa de vida de um escravo e ainda as relações de poder entre senhores e seus respectivos escravos.
Neste ponto, o autor aproxima a farinha de mandioca ao seu principal parceiro na alimentação geral popular, a carne seca, que com seu potencial protéico, complementa o efeito nutricional da farinha de mandioca. Barickman aproveita o momento e aborda a pouca variação em quesito de carnes e baixa propensão dos senhores em propiciar uma maior gama de opções de carnes para seus escravos. Estes, por sua vez, só disporiam de tal variação se eles próprios se empenhassem nesta tarefa através de criação – frangos e afins – ou coleta – no caso do apanhar de mariscos, enfatizando por fim que, o garantido mesmo na dieta dos escravos era a farinha de mandioca.
Daqui para frente o autor tratará das variações nas quantidades de farinha disponibilizadas em diferentes lugares e situações, acordando com as realidades sociais, econômicas e políticas dos contextos tratados e suas respectivas estratificações sociais relacionadas. O interessante é como ele aponta uma disparidade nas rações, em termos de quantidade e variedade, ofertadas entre sudeste – fazendas de café – e nas rações percebidas no nordeste agroexportador – em geral engenhos de cana de açúcar. Aliás, Barickman deter-se-á no tópico da monotonia desta ração aqui na Bahia que se baseia quase que exclusivamente na farinha.
A partir destas discussões, o autor analisará economicamente como que as flutuações do açúcar no mercado influenciaram a entrada, consumo e difusão do trigo e, consequentemente, de seu derivado – o pão – na sociedade baiana, e como que este fator aumentou consideravelmente o consumo de pão e trigo nesta sociedade que outrora reservava aos mais abastados e favorecidos o seu consumo. Contudo, mesmo considerando o papel promissor do pão de trigo e o trigo per se na dieta baiana, “era da farinha, acompanhada de carne ou peixe seco ou, para os menos afortunados, apenas temperada com eles, que se valiam para encher seus estômagos ao meio dia.” (BARICKMAN, 2003, p. 95).
Retornando a uma análise econômica e os efeitos desta economia vigente na sociedade, Barickman percebe que as oscilações na produção da farinha afligiam e afetavam duramente a população, pois, a sua falta, em virtude de uma baixa produção, incidia diretamente no aumento substancial do preço do produto. Apontando aí para uma maior absorção mercadológica da farinha em relação ao pão. Daí o título apontar a farinha como “o pão da terra”. (BARICKMAN, 2003, p. 96).
Já na abordagem do mercado local, Barickman retorna à nossa proposição inicial onde, apontamos como estopim as provocações de Fragoso acerca da dinâmica e dimensões de um mercado interno como sendo importante e dotado de grande relevância histórica para a compreensão da realidade social do Brasil colônia, mas, infelizmente, tangenciado pela historiografia clássica apenas voltada para as macro análises. Desta forma, o autor se propõe a problematizar a magnitude, relevância e pertinência deste mercado focado na disponibilidade, produção e consumo da farinha.
Ao iniciar a análise por quem comprava a farinha em lugar de quem produzia, o autor pretende tornar visível uma parcela do consumo deste gênero de primeira necessidade e, eventualmente, ele irá relativizar a outra parcela da população, a parcela produtora, que visava emancipar-se da oferta contingente do mercado. Obviamente, esta parcela não compradora, influencia na apreensão final da realidade de consumo da farinha pois, esta produção privada e independente, não entrava nas contabilidades governamentais e, assim sendo, não era e não pode ser hoje, quantificada com grande precisão. Por isto, ele aponta para a grande dificuldade de inferir as possibilidades de compreender a real proporção de consumo através de uma análise empírica e material da população, pois, nem toda a população adquiria farinha por meios formais e presente nas fontes passíveis de quantificação. Além, é claro, da imprecisão do próprio censo deste período que também é bastante problemático.
Para realizar tal empresa o autor lançará mão de fontes censitárias para acessar estas informações. Nesta abordagem de percepção do consumo, produção e aquisição da farinha, o autor apresenta dados geográficos sobre a cidade de Salvador distinguindo três diferentes áreas e suas convergências e características suas rupturas e continuidades produtivas, sendo elas: a urbana, a rural e a suburbana. Trazendo esta divisão, ele relativiza o potencial de cada uma para comprar ou produzir farinha. É aqui que o censo demonstrará para Barickman o seu valor em termos de análise das demandas por farinha de cada área apontada e devidamente problematizada, ou seja, através de um estudo demográfico.
Barickman aponta para a explosão demográfica entre os anos de 1780 e 1870. Trata da população fixa e população flutuante e seus respectivos impactos nas demandas de farinha na cidade e como estas demandas poderiam afetar o mercado interno, ou causando a escassez, ou em caso de escassez da produção desta mercadoria, neste último caso, agravando o quadro. É neste ponto que se tem a demanda itinerante (variável) – caso dos exportadores e consumidores externos não residentes fixos da cidade – da demanda fixa (estável) – que seriam os residentes de da região e que, naturalmente, consumiam regularmente o produto.
Com estas exposições o autor mostra o quão amplo era o mercado de farinha na Bahia, e por assim ser, também o era a dinâmica do mercado interno.
Com mais uma problematização acerca do que ocorria em caso de escassez da farinha ele vai relativizar a quantidade da população economicamente privilegiada em detrimento da população economicamente desfavorecida. Como ele começa expondo a esmagadora maioria negra escrava e pobre, que aparecem em relatos de viajantes, dependendo excessivamente dos gêneros alimentícios mais baratos tidos como de primeira necessidades – farinha, carne seca e bacalhau. Assim sendo, a alta da farinha era uma martírio para todas as esferas do grosso da população que não dispunham de substitutos imediatos destes últimos. Suas hipóteses para responder o problema aqui levantado são que muito possivelmente “comprava-se menos carne; pedia-se dinheiro emprestado; mas só se comprava menos farinha em último caso, pois significaria fome” (BARICKMAN, 2003, p. 102). Desta forma, toda região baiana funcionava como um mercado potencial para aumentar as demandas deste produto, tanto para a sua compra como para a sua venda e produção, com exceção de Salvador em sua área urbana.
Daqui para adiante Barickman trará exposições problematizadas das formas de produção face às necessidades de cada área consumidora e produtora da farinha. A princípio, se propõe a verificar a consistência das afirmações sobre a autossuficiência dos engenhos e percebe que, de fato, a realidade é mais complexa e detecta três formatos possíveis para o abastecimento dos engenhos que funcionaram como estratégias: sendo a primeira estratégia a de se valer dos escravos para que estes produzissem a própria farinha, a segunda como no sistema de meeiro onde os escravos deteriam uma parcela de terra e tempo livres onde poderiam produzir o próprio alimento ou como na terceira forma, absorveriam os excedentes disponíveis no mercado para comercialização. Tais apresentações puras poderiam aparecer mescladas, independente ou a partir das exigências de cada momento específico nos engenhos. Naturalmente, não me deterei nos pormenores das especificidades de cada tipo puro apresentado pelo autor pois, não é o real foco desta atividade uma vez que seus enunciados já são por demais evidentes. Mas um breve comentário de cada uma delas, naturalmente, nós não nos furtaremos aqui de fazer.
A primeira denominada cultivo de mandioca por conta do proprietário chegou a ser sancionada como lei, mas caiu em desuso e se tornou lei morta por razões de sua inviabilidade – na leitura dos senhores de engenho – se tornado relativamente comum nos engenhos mais novos (BARICKMAN, 2003, p. 106). Também acreditavam os senhores que o plantio deste gênero em solo favorável a cana era um desperdício já que a mandioca requeria outro tipo de solo. Os conflitos e resistências foram comuns entre os “obrigados” a seguir tal lei, pois, seu objetivo não era compatível com ela, haja vista que havia outros dispositivos disponíveis como a aquisição externa e a roça dos escravos. O autor conclui neste ponto que muitos engenhos não fabricavam sua própria farinha.
Já nas roças de escravos, acreditavam os senhores que era uma atividade interessante dispor de terras e tempo para que seus escravos produzissem seu próprio alimento em suas “roças” que se apresentavam bastante vantajosas (BARICKMAN, 2003, p. 108) aos senhores. E a despeito do que apontara Jacob Gorender, relatos e fontes afirmam completamente o contrário do que havia ele afirmado ao dizer que eram raras as práticas de roças nos engenhos, ou seja, elas, ao contrário, abundaram. Neste ponto, além de relatos de cronistas e viajantes, Barickman utiliza-se também de inventários post mortem para consolidar suas afirmações e em sequência faz uma discussão de direito sobre a terra por parte dos escravos e como ele, o direito, se desenvolveu por diferentes vertentes e perspectivas. Conclui que os “escravos dos distritos açucareiros da Bahia cultivavam roças e que, pelo menos ocasionalmente, colhiam delas uma produção excedente comercializável” (BARICKMAN, 2003, p. 115). Contudo, o autor pondera a significância desta produção escrava baiana se comparada com a produção escrava em outras localidades da América que se fazia notória em feiras e mercados destas outras localidades. (BARICKMAN, 2003, p. 116) E por fim, suas atividades de produção eram mais de caráter complementar e que não eram suficientes para suprir todas as necessidades de consumo dos engenhos.
Por último, veremos como ficava o engenho que se mantinha na linha da dependência do mercado local. Esta opção se resume em comprar o que não se produz ou que falta para o bom funcionamento do sistema agroexportador. Segundo as fontes disponíveis apresentadas pelo autor as compras de farinha eram abundantes. Neste segmento vigorava a ideia de que deixar de investir em cana de açúcar para investir em mandioca era como contrair prejuízo conscientemente, considerando que, com a venda de uma porção de açúcar se comprava em média duas três porções de farinha. Por isto se tornou uma prática tão difundida entre os senhores de engenho a compra em lugar da produção própria, mas, evidentemente, todas as estratégias aqui listadas poderiam aparecer conjunturalmente e o fator solo era um fator determinante na escolha desta dita estratégia. A tentativa de adaptação às diferentes realidades mercadológicas oriundas das flutuações da oferta, e, consequentemente, dos valores de aquisição do produto, se apresentavam como onerosas em vários aspectos, afastando a adesão mais massiva por parte dos senhores da ideia de uma produção interna mais consolidada.
Passada esta micro exposição dos três tipos puros apresentados por Barickman para entender a realidade material da aquisição da farinha de mandioca, vejamos como ele conclui este texto numa análise da agroexportação escravista e que se apoiava majoritariamente neste mercado interno que lhe era indispensável. O autor enfatiza que a dependência da farinha de mandioca, não só em Salvador mas, sobretudo, nas áreas adjacentes – recôncavo e áreas rurais por excelência – dependiam deste gênero.
Com a inserção do conceito de hinterland, aqui entendo como as áreas – recôncavo e adjacências – que, conectadas a Salvador como escoadouro de sua produção, tem com ela uma relação de parceria e cooperação pelo fato desta considerar as terras produtoras sua base de sustento econômico a partir das taxas portuárias e absorção de seus produtos essenciais – escravos, manufaturas ocidentais, importados em geral oriundos de outro ponto da colônia etc. Contudo, neste cenário econômico de investidores – contratadores, senhores de engenho, atravessadores e comerciantes coloniais (internos) – temos o “consumidor urbano” que necessitava do mesmo produto, a farinha de mandioca, em igual intensidade (BARICKMAN, 2003, p. 123).
Tal recorrência de disputas faz com que a capital assumisse uma postura senhorial sobre seus hinterlands quase que, por vezes, com o apoio da coroa, impondo que estes últimos produzam, ainda que forçosamente, a farinha de que todos necessitavam. Obviamente, tal imposição não funcionou como esperado, pois, como já exposto aqui, ninguém queria deixar de lucrar com o açúcar em favor da mandioca.
Por fim, o autor sustenta que, o consequente crescimento de engenhos dinamizou uma expansão de atividades manufatureiras e dentre elas, a indústria da farinha de mandioca, e sua recíproca é verdadeira, ou seja, sem tal expansão, é natural afirmar que o crescimento dos engenhos seria impossível, assim sendo, há um processo reflexivo no crescimento analisado pelo autor. E neste processo, o mercado agroexportador não inviabilizou a expansão do mercado interno por atrair todas as atenções e esforços e muito pelo contrário estimulou, pois sem este, a reprodução deste mercado agroexportador torna-se impensável. Enfim, nota-se que se desenvolveu a partir da cana um forte mercado interno, mas, que, apenas focado para suportar esta atividade canavieira, viu-se por fim como economia limitada e invariável em virtude das próprias demandas internas que eram meramente para a reprodução do primeiro. 



[1] Fonte para a referência, pois, no conteúdo programático não estava completa, foi o site da universidade onde o professor Bert Barickman leciona que segue aqui: Disponível em: http://history.arizona.edu/bjb Acessado em: 05 de Dezembro de 2012.
[2] Idem.
[3] Cf. FRAGOSO, J. L. R O império escravista e a república dos plantadores. Economia brasileira no século XIX: Mais que uma plantation escravista-exportadora. In: LINHARES, Maria Yedda Leite (organizadora). História geral do Brasil. – 9 ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 1990. 5º Capítulo, pp. 144-187.

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