segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Anti-negritude de gênero e o projeto brasileiro impossível: Estudo crítico dos negros brasileiros emergentes.

Anti-negritude de gênero e o projeto brasileiro impossível: Estudo crítico dos negros brasileiros emergentes.


João H. Costa Vargas [1]
Universidade do Texas em Austin, EUA
Traduzido por: Wilson Oliveira Badaró

Resumo
Uma nova geração de negros erudito-ativistas brasileiros está fazendo perguntas críticas sobre a natureza e o processo da política. Não mais restrita á dominação branca brasileira ou aos cânones e rituais acadêmicos eurocêntricos, essas vozes negras, enraizadas nos esforços coletivos voltados contra as onipresentes e persistentes práticas discriminatórias contra o gênero negro, desafiam a maquinaria cognitiva e política do mundo social. Sônia Santos, Jaime Alves, Luciane Rocha, e Maria Andrea Soares concentram-se em experiências negras que sempre revelam uma estrutura de antagonismos contra os negros. Suas análises sugerem que o caráter eminentemente corrupto do projeto social e ideológico brasileiro dominante. Se o projeto pode ser reformado, ou se deve ser destruído e substituído depende de como nós lemos e do quão longe estamos dispostos a levar cada análise.
Palavras-chave
Diáspora negra, Brasil, Anti-negritude de gênero, Violência
Sônia Santos, Jaime Alves, Luciane Rocha, e Maria Andrea Soares, os autores dos ensaios neste volume, fornecem percepções sugestivas sobre as experiências de gênero de negros e negritude no Brasil. Os escritos são convincentes por causa dos materiais etnográficos densos que eles apresentam e analisam. Assim, a importância destes ensaios reside na ladainha de proposições heurísticas, hipóteses, e projetos políticos e estéticos que geram. Eles falam da vida dos negros e morte social como fios misturados de geografias da diáspora. E eles adotam e elaboram a partir das posições aparentemente difíceis, se não impossíveis, de negritude gênero, revelando, assim, tanto cenários distópicos quanto cenários cautelosamente esperançosos. Estes ensaios são tanto sobre a sujeição negra, como são sobre objeção negra à sujeição (Moten, 2003).
Entre o não mais e o ainda não, preso neste momento incerto ainda que potencialmente transformativo, esta nova geração de negros erudito-ativistas brasileiros está fazendo perguntas críticas sobre a natureza e o processo da política. Não mais restrita á dominação branca brasileira ou aos cânones e rituais acadêmicos eurocêntricos, essas vozes negras, enraizadas nos esforços coletivos voltados contra as onipresentes e persistentes práticas discriminatórias contra o gênero negro, desafiam a maquinaria cognitiva e política do mundo social. Em diálogo com, e/ou opondo-se à instituições brasileiras e as premissas e práticas da sociedade civil, Santos, Alves, Rocha e Soares concentram-se em experiências negras que sempre revelam uma estrutura de antagonismos contra os negros. O mundo social negro é um mundo em guerra.
Esta nova geração constrói a partir das idéias de Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez, entre muitos outros críticos brasileiros negros. Embora esses autores emergentes se expressem em inglês e estejam profundamente imersos em várias correntes feministas de negros, eles desenvolvem um conjunto de estratégias analíticas que descentram as perspectivas anglófonas dominantes sobre a diáspora negra e sobre os feminismos negros. Baseando-se em material etnográfico reunido em e sobre as dinâmicas sociais negras brasileiras, que incidem especificamente sobre a saúde reprodutiva das mulheres negras, práticas de jovens negros que reclamam espacialidade urbana, experiências de violência de mães negras, e representação de negros e da negritude na cultura popular. No entanto, ao produzir um conjunto articulado de prementes conhecimentos, os escritores apontam para componentes relacionados com a fundação da política anti-negra. Embora nenhum dos autores digam explicitamente, suas análises sugerem o caráter corrupto imanente do projeto social e ideológico brasileiro dominante: a partir da perspectiva do afro-descendente, o Brasil é uma fraude. Se o projeto pode ser reformado, ou se deve ser destruído e substituído depende de como nós lemos e quão longe estamos dispostos a assumir cada análise.
Uma das experiências que os autores brasileiros negros neste volume têm em comum é a imersão e envolvimento ativo com as perspectivas da diáspora negra dentro e fora do Estado-nação brasileiro. Em vários graus identificados com a (bastante ostensivamente) auto-proclamada Escola de Estudos da Diáspora Negra de Austin (Gordon, 2006), Santos, Alves, Rocha e Soares habitam e de bom grado teorizam desde uma perspectiva estrangeira do ponto de vista, se eles se encontram no Brasil, nos Estados Unidos, ou em outro lugar. Indivíduos negros produzem elevada dissonância social, em espaços canônicos brancos da academia e da administração, incluindo eventos custeados por iniciativas governamentais e não governamentais, universidades, conferências e fóruns públicos bem conceituados. As variações de gênero, cor e classe social impactam no nível de dissonância. Ao nível da análise, a qualidade dissonante de pontos de vista dos autores significa que suas obras ainda não são aceitas como representações legítimas dos processos brasileiros e da diáspora negra. No Brasil e nos Estados Unidos, embora esses autores estejam sempre sob a suspeita que é lançada sobre qualquer intelectual negro, a suspeita de que a experiência é agravado pela sua transnacionalidade. Tudo isso é para dizer que, enquanto o 'não mais' for certamente palpável, o "ainda não" sugere um cenário de integração e respeito que é, na melhor das hipóteses, um tiro no escuro. As experiências profissionais dos autores são elas próprios a evidência de uma estrutura diaspórica de disposições contra os negros. Para tornar as coisas ainda mais complexas e aguerridas, é bastante evidente que os não-negros não decretem tais disposições exclusivamente contra os negros.
Santos, Alves, Rocha e Soares recusam-se a perguntar ao absolutamente mal informado, vinculado com a má fé, e francamente pergunta irresponsável sobre se a antinegritude de gênero é relevante. Em vez disso, os autores desta edição especial, diretamente ou por implicação, consultam: como é que a antinegritude de gênero se manifesta em práticas da sociedade civil e do Estado? Esta importante questão leva a, investigação crítica fundamental: se as polis brasileiras podem integrar os negros? Especulando ao longo destas linhas, pode-se propor: se a polis não é capaz de integrar os negros como de facto, cidadãos de pleno direito e, em seguida, se a polis, do ponto de vista negro, se são projeto e eventos impossíveis. Os chronos de integração – o tempo decorrido, tempo imaginado, o tempo experienciado – é um chronos impossível. Sucede que o sujeito negro de gênero é um tema impossível, aquele cujo gênero impossível, negritude impossível, ser impossível, habita as muito impossíveis coordenadas de tempo e espaço que compõem a nação possível. A nação é possível porque o sujeito do gênero negro, enquanto sujeito, enquanto cidadão, é um oximoro. Sempre já[1], assim eterna, portanto, fora da linearidade do tempo, o sujeito negro impossível ocupa as zonas de morte. Não é por acaso que, em Santos, Alves, Rocha, e os escritos de Soares, a morte é um evento tão importante – sempre presente como uma possibilidade, como experiência, como representação, como a repetição, quase banal. Que nós, às vezes, tornamo-nos ainda enfurecidos pela morte aparentemente desnecessária de uma pessoa negra – apesar de que seria um exagero dizer que estamos surpresos – sugere que, de algum poderoso, embora nem sempre em formas transparentes, negros esperam pela aceitação e inclusão. Se as aceitação e inclusão são metas atingíveis e realistas dependem de uma posição sobre antinegritude: é destrutível, ou pelo menos controlável? E se sim, como? E quem pode e deve ser envolvido no processo?
Para se envolver com essas questões temos de atravessar camadas grossas e profundas de uma máquina cognitiva dominante que sugere um cenário fundamentalmente divergente, estruturado em torno de um conjunto de narrativas relacionadas e hegemônicas: a nação brasileira abrange tudo; racismo anti-negro, quando e se existir, pode ser, será, e já está diminuindo, e o atual boom econômico, gerido pelos competentes, incomumente populares administradores de esquerda (presidentes Lula e Dilma Rousseff paradigmaticamente simbolizando o momento) vai levantar todos os barcos, incluindo aquele dos afro-descendentes. Tal aparato cognitivo expressa e reafirma uma ontologia mítica que acolhe a negritude, aceita, procura, e já incorpora a miscigenação e a harmonia social. O sobre-humano todo-amoroso, cósmico, figura social confiante que encarna esta máquina ideológica é um cyborg. Este cyborg exige e decreta a eliminação mágica de negros – mágico porque a eliminação é apresentado como seu exato oposto: amálgama tão benevolente. Este cyborg, tão sedutor quanto parece, precisa ser destruído, porque o seu desejo de mistura, como Abdias do Nascimento diria, é uma tecnologia de massacre. O projeto nacional otimista e sua ontologia atendente, eu ouço os autores neste volume sugerindo, são enganosos na medida em que consistentemente produzem morte social negra.
Nos ensaios que se seguem, as intersecções entre negritude de gênero e geografias controvertidas são uma chave para o desafio analítico. O reconhecimento de que esses cruzamentos estão no cerne de uma condição diaspórica negra e seu processo – o da aguerrida presença negra em Estados-nação das Américas – figura proeminente em cada uma das explorações dos autores das restrições políticas e possibilidades relativas às cidades mundiais brasileiras. Conforme análise de representações visuais da negritude indica, falar da presença negra aguerrida é se envolver com o olhar branco dominante. Um olhar que exige controle, distância, separação. Um olhar que é ameaçado com a perspectiva de ser visto, o que significa a perspectiva de ter seu ponto de vista desafiado, seus privilégios questionados, sua pureza negada. Com base na análise da ontologia negra (1967: 110) de Frantz Fanon, podemos supor que o corpo negro de gênero deve ser de gênero e negro em relação ao olhar branco (ele mesmo sempre já de gênero e racial). O inverso, porém, não é verdade. No caso do corpo negro como gênero masculino, Fanon conclui que "[o] homem negro não tem resistência ontológica nos olhos do homem branco". Em outras palavras, o olhar branco, e o ser de gênero branco, não é dependente do olhar negro. Na verdade, o olhar branco e, portanto, o ser branco, depende do pressuposto de que, ao mesmo tempo que vê, captura e coisifica – 'Olhe, um negro[/negra]' – é protegido contra a negritude.
Os ensaios de Santos, Alves, Rocha e Soares engajam um problema persistente que afeta a sociedade brasileira: qual é o lugar de negros e negritude no imaginário nacionais, arenas políticas e paisagens urbanas? Embora possa haver um lugar para a negritude nos reinos da representação e da atuação (por exemplo, como ritual, como o consumo, como o medo, como desejo, como oposto ontológico), às vezes celebrada, às vezes negada, muitas vezes ambos, a pergunta sobre o lugar dos negros – como corpos, comunidades e terra – é complexa, e porque nos convida a lutar com os resultados reais das representações e práticas sociais, talvez mais urgentes.
A distinção entre a negritude e negros é, naturalmente, uma estratégia analítica que tem pouca analogia com a experiência: seria um desafio para identificar a manifestação de um sem o impacto do outro. Ênfase na divisão, no entanto, permite um exame nacional de uma contradição fundadora das relações sociais brasileiras e representações, ou seja, a negação simultânea da relevância da raça em geral, e em particular da negritude, e da hiperconsciência de raça, e negritude especificamente, como parâmetros normativos dos quais o comportamento, representações, e os arranjos institucionais desenham.

Análise Relacional da antinegritude de gênero


Numa perspectiva diaspórica negra, a gramática de estruturas antinegritude, os mundos sociais e cognitivos em formas que permitem paralelos, conexões e analogias entre fronteiras de tempo e geografia (Barlow, 2003; Harrison 2002; Robinson, 2000; Winant, 2001). No caso específico de estudos críticos sobre as relações sociais brasileiras, Angela Gilliam (2001), Michael Hanchard (2003), Sonia Santos (2008), Keisha-Khan Perry (2009), Jaime Alves (2009), e Luciane Rocha (2010), entre outros, têm enfatizado suas semelhanças vis-à-vis outras nações e estados de império (Jung, 2011), ao invés do caráter sui generis da arquitetura social brasileira comumente assumida. Isto não é para negar especificidades das relações sociais brasileiras, mas sim, é para analisar essas características únicas no contexto de uma antinegritude diaspórica primordial que estrutura mundos sociais, em particular, ainda costumes relacionados. Um olhar sobre os indicadores econômicos e sociais oficiais, nos Estados Unidos e no Brasil, é suficiente para concluir que, inflexões locais, não obstante, em ambos os lugares oportunidades de vida nas esferas do trabalho, habitação, justiça criminal e de saúde estão relacionados à própria posicionalidade racial (Paixão, 2010; Telles, 2006; Winant, 2001), e que o mais próximo é/está para a negritude, com variações de acordo com as formas que o gênero se articula com a raça, maior o nível de desvantagens. Maiores disparidades existem entre negros e não-negros, mais do que dentro dos grupos raciais, um padrão indicativo de uma estrutura antinegra diaspórica de antagonismo racial de gênero (Harrison 2002; Hartman, 1997, 2007; Wilderson 2010). Explorando as implicações de uma perspectiva diaspórica que centraliza a antinegritude, Jared Sexton (2010: 47) escreve:
Se a opressão dos povos não-negros de cor em, e talvez além, os Estados Unidos parecem condicional para as instâncias históricas e funções em um escopo empírico mais restrito, a antinegritude parece invariante e ilimitada (o que não significa que o primeiro é de alguma forma insignificante e de curta duração ou que o último é desgastante e imutável). Se perseguido com alguma consistência, o tipo de análise comparativa descrita acima, provavelmente afeta a formulação da estratégia política e modifica o comportamento da nossa cultura política. Na verdade, pode desnaturar o instinto comparativo, em favor de uma análise relacional mais adequada para a tarefa.
Variações de uma estrutura de análise relacional Santos, Alves, Rocha, e os ensaios de Soares. A análise relacional constrói a partir de fatos da negritude de gênero transnacional e examina suas manifestações locais. Destacando a negritude, esta perspectiva especifica a supremacia branca, tornando-se um discurso histórico de poder que depende da associação entre negritude, por um lado, e não humanidade, exclusão, aversão, por outro. Ao refletir sobre a constituição e os efeitos das hierarquias de gênero brancas supremacistas raciais, a negritude e os corpos negros ganham relevância central – não total – como demarcação de zonas de morte a partir do qual os grupos dominantes e subordinados são constituídos (Sexton, 2010: 48). O continuum da supremacia branca de relativa pertença torna-se um continuum que salienta a exclusão negra como a exclusão paradigmática. Um campo de continuidades, mais do que rupturas, define a diáspora negra e seus estados-nação.
Como os ensaios de Santos e Rocha mais incisivamente observam, os aspectos de gênero da antinegritude constituem um fio significativo de redes da diáspora. Hortense Spillers, por exemplo (2003: 214-15), adianta que a dinâmica de gênero específica para os sobreviventes da chamada "passagem do meio" estão necessariamente relacionadas, mas ainda não redutíveis às normas de gênero dominantes que sobredetermina não-negros. O argumento é o seguinte. A suspensão das distinções precedido de gênero, e uma violência primordial imposta sobre corpos negros definidos, a presença negra na diáspora. As normas de gênero constituem, assim, um campo pronto para o combate que, por um lado, é muito influenciado por padrões de respeitabilidade hegemônicos, e por outro oferece várias possibilidades que, como eles questionam expectativas normalizadas de desempenho social de gênero, estruturas de impacto de raça e gênero.
A leitura crítica da vida após a morte da escravidão significa trazer as estruturas sociais do passado, e não como um reservatório imutável mesmo, mas como um símbolo cuja energia se dissipa em formações contemporâneas de raça e gênero. Levando em conta o passado no presente e, assim, o presente como reanimação e modificação do passado, as seguintes proposições heurísticas emergem dos ensaios. (Observe como eles se envolvem e, assim, necessariamente modificam, deslocam, um diálogo diaspórico que tende a ser anglófono e centrado em experiências de escritores negros e comunidades nos estados de língua inglesa.) Em primeiro lugar, como Santos, Alves, Rocha e Soares e sugerem, colocado fora simbologia do gênero da fêmea e do macho normatizados, a fêmea negra e macho não habitam área social predeterminada (Spillers, 2003: 228). Isto não é para negar o óbvio: corpos negros são sobredeterminados, continuando a violência (Hartman, 1997: 86). Esta violência expressa e reproduz uma infinidade de 'imagens de controle' (Collins, 1991). Para enfatizar as forças sociais que subjugam corpos de acordo com a constante mudança, no entanto, restringindo, as normas de gênero devem reconhecer as maneiras pelas quais as imagens que controlam a função de estereótipos que são ambos impostos e resistiram. A 'Mãezinha', a 'mãe do bem-estar', e o 'homem negro criminoso' (Russell, 1998), por exemplo, geram expectativas sobre a natureza de uma pessoa e o comportamento com base em sua raça assumida, gênero e sexualidade. Ao mesmo tempo, se opor a tais expectativas é, forçosamente, criar conjuntos alternativos de suposições e conduta. E isso constitui a segunda proposição heurística emergindo dos ensaios: tanto quanto os corpos negros são submetidos a desumanização, eles também realizam contra-narrativas que, embora nem sempre eficaz em negar as normas impostas, no entanto, sugerem possibilidades além do material e limites simbólicos antinegritude de gênero. Esses limites não são apenas sobre o próprio corpo e comportamento, pois eles produzem limites espaciais e, portanto, políticos. O que quer dizer, as possibilidades performativas anunciadas em ensaios deste volume são mais sobre a sobrevivência psíquica quando eles estão prestes a reconfiguração simbólica e experimentação política.

Brasil na diáspora, a diáspora no Brasil


Atualmente, muitos conglomerados urbanos no Brasil podem ser analisados como terrenos de possibilidades em seu interior, embora, e como um sintoma de processos esmagadores antinegros. Redes sociais negras densas e complexas são justapostas à terra que tem sido, talvez, mais ainda, nos últimos anos, um campo de batalha entre concorrentes projetos sociais (por exemplo, Carril, 2006). Geografias negras históricas – evidência de um apartheid atual (Oliveira, 2007; Rolnik 1989) definido pela violência, a exclusão, bem como a presença desproporcional de negros – tornou-se o foco principal da ocupação militar e policial sem precedentes. Aniquilar as gangues de tráfico de drogas abrigadas nessas áreas é o objetivo oficial.
O Brasil, de forma mais ampla, constitui um caso interessante dado o atual contexto econômico marcado pelo controle da inflação, aumento do salário mínimo, e as políticas públicas, como o Bolsa Família que foram eficazes na transferência de renda para famílias carentes. Tendo em conta que os negros – que no Brasil inclui pretos e pardos, de acordo com o censo – são desproporcionalmente representados entre os pobres, não é de admirar que eles foram os principais beneficiários de tais políticas redistributivas. No entanto, um foco crítico sobre antinegritude de gênero torna possível levantar questões sobre a viabilidade da presença negra no Brasil, mesmo em um contexto de aparente elevação social do negro. Por exemplo: em 2007, em 26 dos 27 estados brasileiros, a taxa de mortalidade por homicídio de negros era maior do que a taxa para os homens brancos, e a assimetria teve magnitude exponencial: no estado da Paraíba, por exemplo, foi 1.181,4 por cento superior; 806,9 por cento maior em Pernambuco. No estado do Rio, essa taxa foi de 130,0 por cento maior para os negros do que para os brancos (Paixão, 2010: 255, 256). Mais revelador, talvez, é o que é chamado de "homicídio por intervenção legal", ou seja, os homicídios cometidos por indivíduos que trabalham para o Estado, especialmente a polícia. Não obstante os padrões de subnotificação documentadas em relação a tais homicídios, entre 2001 e 2007, têm os negros representando 61,7 por cento do seu total, a 64,5 por cento em 2007 (Paixão, 2010: 259). Os negros estão sobre-representados nos índices de morte violenta, morte evitável por doenças, acesso vetado à assistência médica e outros indicadores que sugerem padrões de longa data de exclusão (Paixão, 2010: caps 2, 4). Uma hipótese que emerge das obras de Santos, Alves, Rocha e Soares é que, ao passo que atualmente os negros experimentam ganhos econômicos sem precedentes, eles também são desproporcionalmente vitimados pela negligência do Estado (nas esferas da educação e saúde, por exemplo) e, mais incisivamente, a violência. Enquanto a elevação econômica sugere um grau de assimilação em um mercado consumidor em expansão, o Estado negligência e a violência indica uma disposição estrutural antinegros de longa duração que põe em questão a possibilidade de plena integração do negro e sua cidadania. Em debate é se, e em que grau, a vida negra é viável na política brasileira.

Configurando o cenário mundial

Para contextualizar os problemas aos quais os ensaios deste volume se endereçam, vamos nos focar brevemente sobre os recentes acontecimentos do Rio de Janeiro. Alves é o único autor nesta coleção cuja pesquisa não se baseia principalmente no Rio de Janeiro. No entanto, suas percepções sobre lutas de São Paulo sobre o território sugerem uma cornucópia macabra de semelhanças e continuidades.
Depois do infame massacre de 2007 no Complexo do Alemão, uma classe trabalhadora, majoritariamente uma área de negros no noroeste da cidade, quando 19 pessoas foram mortas em uma única operação policial, a região metropolitana do Rio de Janeiro testemunhou uma onda sem precedentes de violência, aparentemente atos coordenados de desafio contra o Estado e a sociedade civil. A queima de ônibus, caminhões e automóveis de passageiros; tiros em oficiais da polícia, incluindo a derrubada de um helicóptero da polícia no Morro dos Macacos, em outubro de 2009 (22 pessoas foram mortas nessa operação), e até mesmo explosões em áreas turísticas (Salles, 2007) – todos marcaram a cidade como cenário nacional em que o Brasil do projeto modernizador emergente é testado.
Em 2 de outubro de 2009, o Rio foi anunciado como o anfitrião dos Jogos Olímpicos de 2016. Respondendo às preocupações de segurança expressas durante o processo de seleção hospedeira da cidade, o governador do estado do Rio, Sérgio Cabral, sinalizou sua determinação de assegurar o controle social através da contratação de Rudolph Giuliani, ex-prefeito de Nova York, como Conselheiro de Segurança dos Jogos. Enquanto Giuliani teve muito de sua aprovação municipal e nacional a partir de sua postura de tolerância zero contra o crime, é também sabido que, entre a população negra da cidade, alguns administradores já ultrapassavam o seu nível de desaprovação (Powell, 2007). A brutalidade do Departamento de Polícia de Nova York empregou sobre membros de comunidades carentes, e especialmente sobre o negro, foram notoriamente exemplificados no assassinato de Amadou Diallo: em 1999, no Bronx, ele foi baleado 41 vezes por quatro policiais à paisana. Mais cedo, em 1997, Abner Louima foi brutalizada e sodomizada com uma alça quebrada do êmbolo de um banheiro por policiais no Brooklyn. Diallo era um imigrante da Guiné, e Louima é originalmente do Haiti, sugerem ressonâncias diaspóricos profundas e amplas. Estas ressonâncias reafirmam o lugar necessário que o Estado da nação brasileira ocupa nestas teias de inflexões de gênero e de raça, impactando e impactado por lutas sobre direitos para a cidade e, finalmente, a propriedade da terra.
Muitos dos fuzileiros navais brasileiros empregados nas operações policiais no Rio e em outras cidades brasileiras são veteranos do Haiti. O Brasil lidera o componente militar da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti, em operação desde 2004. Missões militares não ao contrário de quem trabalha no Rio já mataram dezenas de pessoas no Haiti em várias ocasiões. Por exemplo, em 6 de Julho de 2005, pelo menos 26 pessoas foram mortas em um atentado bem sucedido em Emmanuel "Dred"[2] Wilmer, também conhecido como Dread[3] Wilme, e quatro de seus seguidores mais próximos. Wilme era abertamente hostil à ocupação militar da ONU de seu país e se opôs à derrubada do presidente constitucional Jean-Bertrand Aristide (Delegação Estadunidense do Trabalho e Direitos Humanos, 2005). A importância desses eventos diaspóricos não pode ser exagerada, pois eles sugerem linhas de continuidade entre os territórios separados pela distância geográfica, mas aproximaram-se devido à utilização frequente de ocupação policial-militar e táticas de pacificação contra os civis, os locais familiares de exclusão negra do Estado-nação, e a super-representação quase esperada dos corpos negros como vítimas da violência letal. Ao invés de comparações diaspóricas, então, o que as lutas violentas no Rio sugerem é um conjunto profundo e contínuo, e reveladora das relações entre as formas em que se manifesta a antinegritude de gênero em e através de chamadas missões de pacificação. O Rio torna-se interessante, não porque ele é único, mas porque oferece uma variação de um aparato repressivo que é diaspórico em seu alcance e efeitos.
No Rio de Janeiro, essa sequência de cinco anos de confrontos mortais frequentes oferece uma janela para um padrão histórico de longa duração, que remonta a pelo menos o estabelecimento de assentamento informal similar, na virada do século 20 (Moreira, 2006; Perlman, 2009). Os ensaios neste volume nos lembram que a negritude tem um papel central na definição do escopo, letalidade e intensidade prolongada de tais conflitos – conflitos que são tanto para a tomada do controle de territórios preparados para combate ao passo que eles estão prestes a defender em espaços da cidade do Rio de Janeiro um projeto nacional modernizador que parece ter pouca, ou nenhuma, tolerância para o controle autônomo da terra de negros e, em última instância, a ação política autônoma, negra.




[1] Endereço para correspondência:
João H. Costa Vargas, Departamento de Estudos da Diáspora Africano e Africano da Universidade do Texas, Austin, TX 78712, EUA. Email: costavargas@mail.utexas.edu.
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[1] Creio que aqui o Vargas trabalhe um conceito, dentre tantos outros perceptíveis em sua obra, de Paul Ricoeur que expõe, grosso modo, a ideia das intervenções sociais podendo ser narrada pois é e "sempre já" está simbolicamente mediada quer seja por sinais como por regras ou normas (Nota do Tradutor).
[2] O termo dred ou dread, o primeiro seguramente derivando do segundo como corruptela, significam em inglês O pavor, o medo, horror. (Nota do tradutor)
[3] Idem (Nota do Tradutor)

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