sexta-feira, 26 de abril de 2013

A Contraposição das Ideologias: Sofistas e Filósofos


1-    Antípodas, mas mutuamente dependentes: Sofistas e Filósofos. A contribuição sofística na construção do pensamento ocidental

BADARÓ, Wilson Oliveira
(...) a sofística levou a uma ampliação dos domínios da ciência jônica nos aspectos ético e social, e abriu o caminho a uma verdadeira filosofia política e ética, ao lado e mesmo acima da ciência da natureza (JAEGER, 1994, p. 348).

3.1- O TEMOR DO OCIDENTE ANTIGO NA VOZ DOS SOCRÁTICO-PLATÔNICOS

Diríamos que estes renomados e sempre procurados mestres da retórica fizeram a sua sociedade despertar para a necessidade de aprimorar-se no sentido de expor, sempre que possível, tendência às discussões políticas e à superação do seu oponente, numa erística que, contrariando Platão, preocupava-se apenas com a vitória no debate, abandonando o compromisso com a verdade. Deste ponto de vista temos, então, uma sociedade apta a incutir diferentes opiniões e debater criticamente a situação da divisão social do trabalho e, sobretudo, a divisão social do poder na esfera política. Por isto é válido enaltecer, aqui a relevância do tão frutífero dissoi logoi (racionalidade relativista) silogístico, que traz um percurso potencialmente tricotômico, ante a verdade única e inquestionável que pregava a filosofia, baseada nos nomoi, que, por sua vez, apresentava ideias díspares à segunda, levando, assim, a novos conhecimentos ou forçando, ambos os lados, a se reelaborarem. Torna-se evidente que esta tendência crítica, cética e relativista da sociedade, incitada pelos sofistas, configura-se, para os opositores – “filósofos preferenciais” – desta corrente intelectual, ao menos, no maior foco de ameaça à “ordem” pretensamente universal.
Se fossemos analisar tais contraposições intelectuais em nossa atualidade, verificaríamos tal fato como um processo dialético e natural, se não tivéssemos uma tradição filosófica que prioriza e seleciona a partir de suas afinidades orientadoras, primárias e genéticas. No entanto, influenciados por esta "tradição filosófica", não admitem, por exemplo, a “possibilidade” da primazia factual do reflexo cognitivo instituído a priori por Protágoras – um sofista. Não perceberam, talvez, estes tradicionalistas, que os sofistas desejaram e lograram ensinar a virtude, enquanto logos, para um grande número de pessoas, colocando-a ao alcance de todos? Ou seria melhor ofuscar/redirecionar as doutrinas dos “mestres de retórica”, não apenas contrariando-as, mas, acima de tudo, ora deturpando-as com leituras distorcidas e visivelmente tendenciosas, ora atribuindo-as a outrem que não o seu real teorizador, como no caso da impossibilidade de “dizer coisas que são falsas”[1]? Não, parece que a disputa estava apenas no patamar das esferas de poder e de todos os instrumentos que pudessem levar qualquer um até ele; e como saber é poder, é importante vetar que ele se dissemine em meio às massas.
Obviamente, o grande temor por parte dos filósofos era que o excesso de ceticismo, probabilismo e relativismo fossem utilizados de forma “pouco produtiva” ou até “mal usados” em favor de uma temida anarquia, pelo efeito do endeusamento da physis, como regente natural e legítimo das demandas humanas, em detrimento do nomos regulador e mantenedor da “ordem” requerida. Desta forma, acreditava-se que a transvaloração ou relativização extrema dos posicionamentos – bem e mal – tornar-se-ia uma prática comum entre os adeptos deste relativismo pregado pelos sofistas, negando o bem defendido pelos filósofos, mantido e garantido pelas nomoi e coroando com louros a naturalidade e espontaneidade do subjetivismo probabilista da physis. Um risco real, existente, porém, nem por isto maior que o risco da manutenção de uma ordem segregacionista e tradicionalista que visasse historicamente exercer uma dominação contínua e protegida por um nomos imposto como oriundo da physis.
Não se quer, aqui, de forma alguma, inverter o que a tradição filosófica ortodoxa de orientação socrático-platônica tem feito aos sofistas, no sentido de negar-lhes o crédito e o reconhecimento de seus feitos. Muito pelo contrário, pois, é justamente por “(...) considerá-los um estágio da maior importância no desenvolvimento do humanismo, embora este só tenha encontrado a sua verdadeira e mais alta forma após a luta contra os sofistas (...) (JAEGER, 1994, p. 348), ainda que historicamente construído. Mas o que se pretende é fazer reconhecer a importância do movimento sofista como um todo, não apenas para a filosofia em si, mas, sobretudo, para a humanidade e a ciência.
A alta densidade da visão relativista sofista trata da inacessibilidade de um homem à subjetividade de outro, pautado em algo que a experiência material trata de explicar propriamente. Um determinado odor pode causar a sensação desagradável em muitas pessoas que, aparentemente, terão a mesma reação repulsiva, contudo, de fato, sentirão em diferentes proporções os mesmos efeitos derivados deste mesmo odor como náuseas, tonturas, dor de cabeça etc. Se solicitamos a descrição da sensação de cada um acerca deste forte odor, teremos diferentes relatos acerca de cada experiência com o mesmo agente gerador das sensações. Aqui, a discussão de causa e efeito está diretamente ligada ao logos e o logos diretamente ligado à subjetividade sensorial de cada um. Assim, teremos para diferentes pessoas, um cheiro forte nauseabundo ou um cheiro forte estonteante e, ainda, um cheiro forte que causa cefaléia, sem que, com isto, uma das características relacionadas aos diferentes logos sobre o cheiro forte seja mais verdadeiro que outro, pois, cada um relatou seu logos (razão guiada pela percepção) a partir de suas capacidades cognitivas e físicas. Por isto, colocar as opiniões de todos em nível de verdade, desde que assim lhe pareça com extrema veemência e sinceridade, causa temor nas camadas mais influentes da sociedade Grega antiga.
Quanto à existência da contradição, no quesito onde tudo tem dois logos contra, não é possível contradizer. A solução aparentemente se apresenta de forma fácil e, até certo ponto, óbvia. Embora se fale sobre um mesmo assunto e se tenha aparentes leituras distintas da mesma coisa, se estamos falando diferentes coisas sobre o mesmo objeto é porque não estamos falando da mesma coisa. Aparentemente é a mesma coisa. Retornando ao caso do cheiro forte. Como ele chega até um não é como ele é sentido por outro. O cheiro em si é indissoluvelmente o mesmo, mas o que o transformará será a subjetividade interpretativa de quem sente e traduz a sua sensação para si. Assim, “é necessário que se diga é que no nível verbal é possível a contradição, mas que isso não se aplica ao nível das coisas sobre as quais estamos falando (...) e se ambas as afirmações tem sentido será porque são sobre coisas diferentes, não sobre a mesma coisa” (KERFERD, 1999, p. 156).
Assim, estes que “foram os primeiros intérpretes metódicos[2] dos grandes poetas aos quais vincularam, com predileção, os seus ensinamentos” (JAEGER, 1994, p. 347), fizeram da educação uma arma de acesso geral às esferas de influência política e, consequentemente, ao poder da polis,criando uma expectativa na sociedade acerca das novas possibilidades de alcance da educação. Tal sociedade cria, a priori, que a educação cabível devesse ser considerada por todos como válida, pois, outrora, era familiarmente endógena e restrita às altas camadas dos estratos sociais de sua comunidade. Sendo assim, os sofistas “(...) criam uma atmosfera de educação multifacetada, (...)” que “(...) nem nos tempos de Pisístrato foi conhecida” (JAEGER, 1994, p. 347), difundindo a educação e contrariando Anito, que acreditava ser qualquer cidadão de camadas sociais mais influentes, melhor orientador educacional que os sofistas, confirmando as tendências prevalecentes da aristocracia tradicionalista, ameaçada quanto à prática sofista.

3.2- PEDAGOGIA E SOFÍSTICA: Ciência ou Arte? A quem serve tal discussão?

Segundo Werner Wilhelm Jaeger, “ainda agora está por resolver a questão de saber se a pedagogia é uma ciência ou uma arte (...)” (JAEGER, 1994, p. 349).E, ao que parece, hoje a pedagogia se constitui como uma ciência imprescindível para a perpetuação da reprodução do conhecimento crítico e bem formulado, com teorias de aplicação do ensino, fundamentações pedagógicas e didática progressista. Mas, como também é sabido, assim como na medicina que hoje se encontra completamente mudada em relação ao que foi quando, em tese[3], fundada por Hipócrates (a referência a Hipócrates diz respeito ao precursor da medicina no Ocidente), “os sofistas foram considerados os fundadores da ciência da educação” (JAEGER, 1994, p. 348), transformando a realidade social de sua época através desta atividade intelectual que, então, não dispunha ainda de profissionais habilitados.
Como fundadores desta área do conhecimento humano, os sofista aqui tratados, se incumbiram de, a partir de observação e tratamento sério dos problemas que queriam abordar/solucionar, desenvolver uma metodologia, naturalmente inerente a cada profissional, que desse resultados positivos e satisfatórios para alcançar um dos objetivos de sua profissão, a saber, a transmissão do conhecimento. Como já fora supra mencionado, nem todos tiveram esta visão e tratamento sociológicos para o ato de sua intervenção profissional, porém, os que são abordados neste trabalho, de fato se enquadram nesta afirmação, a saber: Górgias, Hípias, Pródicos, Antifon, Crítias, Cálicles, Trasímaco.
Respondendo a inquietação que o próprio Werner Jaeger coloca, é com ele mesmo que pretendemos responder a polêmica indagação. Ele dirá que “esta transposição do conteúdo da poesia para a prosa é sinal de sua racionalização definitiva” ( JAEGER, 1994, p. 347), se há racionalização, há uma teorização para a transformação de um conhecimento em outra forma de conhecimento. Então, para que tenhamos aqui todos os pilares que sustentam o caráter científico de uma área do conhecimento, nos falta muito pouco. Já passamos pela “observação” do problema proposto, com a percepção das demandas sociais: “(...) os sofistas tratam de investigar as condições prévias de toda a educação, o problema das relações entre a “natureza” e o influxo educativo exercido conscientemente sobre o ser do Homem” (JAEGER, 1994, p. 356).
Agora, temos a “análise das partes” fracionadas com a separação do que é poesia e o que é paideia, neste processo educacional absorvido e projetado através do movimento sofista, naturalmente, com uma metodologia e teoria devidamente “racionalizadas”, como afirmou Jaeger. Um exemplo claro desta dita separação metódica fica visível quando Jaeger comenta que “a conversão da educação numa técnica é um caso particular da tendência geral do tempo a dividir a vida inteira numa série de compartimentos separados (...)” (JAEGER, 1994, p. 349). Verdade, mas, como tal processo fora conduzido requer minimamente uma séria reflexão. Quanto à indução de hipóteses acerca do problema/objeto abordado, cremos já havermos explorado muito estas que, por fim, nada mais são do que “opiniões primárias”, fundamentadas em uma realidade/fenômeno observada que se quer comprovar e que, no final, poderão confirmar-se, refutar-se ou modificar-se.
Assim sendo, como os sofistas são os mestres da “opinião” e, não, da “verdade”, já estavam demasiado versados na proposição de hipóteses em suas duas diferentes fases, a saber, indução e experimentação (verificação das hipóteses). A questão da aplicação das leis gerais também fora confirmada por Werner Jaeger na seguinte passagem: “A ideia de natureza humana (...). Só por ela é possível uma verdadeira teoria da educação” (JAEGER, 1994, p. 357). Se não nos enganam os indícios, os educadores incontestáveis desta época eram os sofistas e, se houve uma teorização da educação, ela somente pôde ter sido constituída dentro dos círculos sofísticos.
Sabemos ainda que “(...) se os gregos tivessem partido da consciência universal do pecado e não do ideal de formação do Homem[4], jamais teriam chegado a criar uma pedagogia nem um ideal de cultura” (JAEGER, 1994, p. 358) que fossem amplamente compatíveis com os pressupostos do conhecimento que se pretende, de fato, científicos. Por fim, a possibilidade de apreensão do logos e da arete, antes restrita, agora, passa a constituir uma lei geral. Algo que foi negado pelos nomoi de uma sociedade tradicionalista, agora vê suas regras de transmissão da educação familiar e endogâmica rompidas pela oposição transformadora de profissionais inovadores e ousados. Não seria uma regra geral a assertória contrária à impossibilidade do ensino e, determinada de fazer valer o que fora dito em teoria, surgir confirmado pela prática? Sem contar as diversas outras observações, de variados sofistas, que se mantiveram pertinentes como leis gerais através do tempo, nas observações de Protágoras; e o dissoi logoi? Não seria a regra do duplo logos uma regra geral?
Por estas patentes evidências de cientificidade é que concordamos com Jaeger quando ele afirma que “a sua valorização não pode ficar sem crítica, precisamente porque aquilo que os sofistas pretenderam e realizaram ainda é indispensável nos nossos dias”(JAEGER, 1994, p. 358).E, muito naturalmente,discordaremos em parte com sua afirmação, embora bem intencionada de que “(...) a exigência que eles vêm satisfazer não é de ordem teórica e científica, mas sim de ordem estritamente prática” (JAEGER, 1994, p. 345). Assim, pois, cremos que, embora não tenha havido uma homogeneidade metodológica e teórica entre os integrantes deste movimento, não quer dizer que não tenham contribuído decisivamente para a constituição das sólidas bases que serviram para a fundação da ciência pedagógica. E obviamente, lançaram mão de utensílios que envolveram certo grau de teorização e cientificização de suas práticas que a posteriori pode ser repetida.
Assim como ocorreu com a história, uma vasta discussão acerca de sua cientificidade ou não cientificidade se deu entre os arautos das ciências ditas positivas e das pretensas ciências “não científicas”. Segundo o neopositivista Karl Popper, só nas ciências formais é possível provar-se com certeza integral algo, sendo que, acordando com este ponto de vista, as ciências factuais se opõem às formais, pois as formais são passíveis de refutação e as factuais, não (POPPER, apud CARDOSO, 1986, p. 07). Pelo visto, a discussão de Popper se reduz a sua interpretação do que é a ciência a partir de um postulado que aqui já foi discutido largamente – que é a relatividade e ambiguidade da verdade e sua utilidade prática.




3.3- O EFEITO POSITIVO DA SOFÍSITCA NA FORMAÇÃO DO HOMEM GREGO

Após sucessivas discussões sobre as benesses da atuação profissional dos sofistas, parece-nos que a sociedade grega respondeu positivamente aos estímulos e novas possibilidades ofertadas por estes profissionais. Justamente por isto, o Aufklarung tornou-se possível na Grécia. Havia aqueles que, por pouco disporem em termos financeiros, se contentavam com profissionais menos renomados, mas nem por isso menos capacitados. Já outros, numa
(…)sociedade competitiva da época, jovens ambiciosos, como Meno e Hipócrates (no Protágoras) queriam gastar fortunas com os sofistas que podiam comunicar o segredo, e a sugestão de que nenhum mestre podia comunicá-la era nos dias de Sócrates ataque a grandes interesses investidos (GUTHRIE, 1995, p. 239).
Como a maior parte dos estudiosos irá atribuir a capacidade de desenvolvimento e projeção da espécie humana a sua capacidade de cooperação mútua que, por sua vez, depende da organização política, para Kerferd, “o pensamento político começa com os gregos”, (KERFERD, 1999, p. 237) e quem liderou a difusão deste pensamento político articulado foram os sofistas, através do movimento e de seu principal propósito – a paideia. Sabemos segundo Jaeger, que “é com eles que a paideia, no sentido de uma ideia e de uma teoria consciente da educação, entra no mundo e recebe um fundamento racional” (JAEGER, 1994, p. 348). E com uma racionalidade mais aguda e voltada para uma crítica da “ordem” estabelecida, Protágoras, de acordo com Kerferd, percebe que “todos os homens de fato compartilham a justiça, e que essa participação é em grau desigual” (KERFERD, 1999, p. 245), sendo a origem desta desigualdade verificável e explicável e, o mais importante, passível de reformulação. Segundo Kerferd, é Protágoras quem lançará as bases da “democracia participativa”[5], desde que todos tenham acesso equânime à educação e, a partir daí, possam, mais ativamente, estar presente na vida política e usufruir das benesses oriundas desta participação.
Por isto,a maior parte dos sofistas, oriundos de outras cidades, são os mais indicados para perceberem as debilidades da cidade aqui tratada com maior proximidade – Atenas –, uma vez que, nesta discussão, cabe “outro tipo de relatividade: homens e sociedade diferem amplamente, e assim, portanto, também suas necessidades” (GUTHRIE, 1995, p. 176). E, no caso de Atenas, mais especificamente, a educação generalizada.
Diferentemente do que se disse, por parte de muitos estudiosos, os sofistas não corromperam moral, política ou eticamente os seus seguidores, “mas isto estava longe de seus pensamentos e a moral e a ordem foram salvas por esta curiosa doutrina, típica deste período, pela qual o padrão de verdade e falsidade é abandonado, mas substituído pelo padrão pragmático de melhor ou pior” (GUTHRIE, 1995, p. 177). Desta forma, gradualmente, os sofistas revelaram as brechas e falhas de um sistema social vigente que favorecia as camadas mais elevadas e bem-nascidas da sociedade em questão. Sempre fazendo tais revelações através da educação, temos a exploração constante de sua projeção social via aplicações de lições, já que “os sofistas são, com efeito, as individualidades mais representativas de uma época que, na sua totalidade, tende para o individualismo” (JAEGER, 1994, p. 347), onde os mais capazes são os que melhor se apresentam a partir de suas capacidades retóricas e, não, de suas qualidades geneticamente herdadas. Tais discussões políticas, iniciadas e alimentadas pelos sofistas em geral, visavam garantir, através da análise mais crítica, subjetiva e acessível ao maior número de pessoas, o direito isonômico com garantias de transparência em sua aplicação, para que o governo de muitos fosse uma verdade e, não, uma utopia velada atrás de uma democracia elitista.

CONCLUSÃO

O movimento sofista, em toda sua amplitude, focou seus esforços no homem e nas transformações sociais, em prol das resoluções de seus problemas, incutindo na sociedade a ideia relativa da verdade, que deve ser sempre considerada a partir das várias visões propostas e, não, de uma visão central, autoritária e axiomática. As discussões sofistas trouxeram ainda a ideia contingente da opinião e o quão eficaz ela é, pois, é a partir desta contingência que se chega a uma hipótese satisfatória. E são justamente estas hipóteses contingentes e probabilistas que são ampliadas para o campo político pelos sofistas. Percebe-se, de forma patente, o que é muito comum na política: “(…) desde o início, o vigor da nova arte de discutir como arma nos combates oratórios. Está aqui, muito mais próximo da retórica que da lógica teórica e científica” (JAEGER, 1994, p. 367), dando uma ideia mais relativa das leis e das decisões nas esferas mais ostensivas da sociedade grega como um todo.
Ainda que se concorde, em parte, com a afirmativa de Jaeger no tocante à prática sofistica, quando ele diz que: “(...) a exigência que eles vêm satisfazer não é de ordem teórica e científica, mas sim de ordem estritamente prática” (JAEGER, 1994, p. 345), tem razão ao afirmar que a sua prática satisfaz. Satisfaz os anseios e demandas das camadas mais carentes de acesso à educação, confirma o caráter revolucionário e transformador das práticas educacionais sofistas e, sobretudo, revela que a história da educação formal, tal qual detemos hoje, e seguindo ainda os mesmos propósitos, tem sua origem nos sofistas. Dizemos isto, pois cremos que o propósito maior da educação não é informar meramente acerca de assuntos herméticos e seletos para discursos e práticas endogâmicas preestabelecidas, mas para formar cidadãos atuantes e que intervenham na realidade de sua sociedade conscientemente e democraticamente. E isto, sem dúvidas os sofistas fizeram com exímia precisão. Mudaram o curso da educação em seu tempo e motivaram e inspiraram várias outras correntes intelectuais a seguirem o mesmo caminho, legando para os nossos tempos a ciência da pedagogia, que tanto, de fato, necessitamos. Se não fosse real a evidente contribuição sofística para educação e ciência universais, o que justificaria que “alguns trabalhos científicos[6] dos sofistas estiveram em uso durante uma série de decênios” (JAEGER, 1994, p. 355)?
Concluímos, portanto, que a validade e pertinência do movimento sofista, enquanto um movimento de forte apelo social em sua época os levou a um patamar de fenômeno social que marcou uma época de transformações e efervescências incontestáveis. O alcance polivalente e diversificado dos sofistas na área do conhecimento possibilitou o enriquecimento intelectual não apenas deles – os sofistas – como também dos filósofos que, com eles, travaram disputas. Nestas disputas, quem mais ganhou, a nosso ver, foi a ciência. Um grande exemplo da magnitude, polivalência e abrangência inegável do fenomênico movimento sofista e o fato de que Protágoras abordou ao menos alguns dos temas que interessavam a Platão na República, fazendo perceber a dimensão das abordagens sofistas em vários campos do saber. Aqui nos é lícito concluir que se um dos maiores, senão o maior de todos os sofistas, tratou de assuntos que eram de interesse de um filósofo como Platão, quem garante que o contrário não é recíproco? E se assim o for, como fora dito anteriormente, só a ciência ganhou. E que novas fontes históricas nos tragam surpresas positivas neste sentido e que nossos anseios por maiores fontes de informações acerca deste formidável movimento surjam, para nosso deleite.
Por fim, foram expostas diversas contribuições neste trabalho que, juntamente com outras, apresentam um movimento constituído por homens que “foram considerados os fundadores da ciência da educação” (JAEGER, 1994, p 347), que ampliaram os conceitos de relatividade e verdade, deram os primeiros passos em direção ao respeito à subjetividade etc. Homens que sem maiores dificuldades, encararam todos os desafios da época quanto a validade de seu ofício, que se via contestado a todo momento pelos seus opositores: “antes dos sofistas não se falava de gramática, de retórica ou de dialética” (JAEGER, 1994, p. 366), e hoje, sua determinação nos permite falar consciente e substancialmente de todos estes segmentos do saber.



[1]Mais informações sobre esta questão podem ser encontradas na obra KERFERD, G. B. O movimento sofista. São Paulo: Edições Loyola, 1999. p. 153.
[2] Grifo nosso.
[3] Ponho esta incógnita nesta fundação de campo do conhecimento por parte de Hipócrates, pois temos evidências sólidas da primazia de Imhotep no Egito antigo, há dois mil anos antes de Hipócrates atuando em área de medicina e segundo algumas teorias muito convincentes, como as de Gordon Childe, muito do conhecimento grego foi gradualmente absorvido do oriente próximo e nele se inclui o Egito.
[4] Grifo nosso.
[5]KERFERD, G. B. O movimento sofista. São Paulo: Edições Loyola, 1999. p. 246.
[6]Grifo nosso.

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BIBLIOGRAFIA
BARROS, José D’Assunção. O projeto de pesquisa em história: da escolha do tema ao quadro teórico(3ª ed.). Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
CARDOSO, Ciro. Uma Introdução à História. Ed. Brasiliense, 1986, 6ª Edição.
CHILDE, V. G.A evolução cultural do homem. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Nascimento da prisão.Tradução de Ligia M. Pondé Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1989.
GADDIS, John Lewis. Paisagens da história: como os historiadores mapeiam o passado. Tradução de (...).Rio de Janeiro: Campus, 2003.
GAY, Peter, The Enlightenment: an interpretation. Londres: Editora Weidenfeld& Nicholson, 1967.
GUTHRIE, W. K. C. Os sofistas. Tradução de João Rezende da Costa. São Paulo: Paulus, 1995.
JAEGER, Werner Wilhelm. Paideia: a formação do homem grego.Tradução de Arthur M. Parreira– 3ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1994.
KERFERD, G. B. O movimento sofista.Tradução de Margarida Oliva. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
PLATÃO. “Fedro”. In: Diálogos. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2007.
_____. “O banquete”. In: Coleção Os Pensadores. Tradução de José Cavalcante de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
_____. “Protágoras”. In: Diálogos. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2002.
_____. “Sofista”. In: Coleção Os Pensadores. Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Os Sofistas como Movimento Social em Prol da Transformação Educacional Grega


1-    Os Sofistas como um Movimento Socialmente Fenomênico

BADARÓ, Wilson Oliveira

“Do ponto de vista histórico, a sofística é um fenômeno tão importante como Sócrates ou Platão. Além disso, não é possível concebê-los sem ela” (JAEGER, 1994, p. 339).

2.1- O MOVIMENTO SOFISTA E SUAS IMPLICAÇÕES SÓCIO-ECONÔMICAS: a internacionalização de atenas

Decerto um movimento desta magnitude, que toma notoriedade em meio às autoridades e incomoda tantas personalidades e pensadores destacados de seu contexto, deve ser analisado mais pormenorizadamente e levado ao patamar de fenômeno. Neste capítulo, veremos os detalhes deste movimento fenomênico e quais implicações materiais estão ligadas a ele.
Primeiro, seria interessante expor o que já fora comentado antes, mas de forma menos detida, que é o fato da notoriedade deste movimento como precursor da difusão de ideias e discussões que transformaram os rumos do pensar. Óbvio que o período de 450 a.C à 400 a.C foram de efervescência e inovações. Não é a primeira vez que a racionalidade toma corpo e espaço no âmbito da Grécia antiga, mas, é aqui que o saber, voltado para os mais variados objetos – como o homem e suas complexidades – se difundem em meio a todos os pensadores. Atenas conta com uma confluência de sofistas oriundos de vários pontos distintos do mundo Grego, tornando-a “por uns sessenta anos, (...) o verdadeiro centro do movimento sofista” (KERFERD, 1999, p. 31). Por isto, nesta cidade tão enriquecida pelas diversas influências e formas de ver e pensar o mundo, que:
(...) talvez o aparecimento de grandes individualidades espirituais e o conflito da sua apurada consciência pessoal não tivessem dado origem a um movimento educacional tão poderoso como o da sofística – que pela primeira vez estende a vários círculos e dá publicidade total à exigência de uma arete baseada no saber (...) (JAEGER, 1994, p. 339).
Estas individualidades a que se refere Jaeger são, justamente, estes sofistas que, vindos de todos os lugares, propiciaram um ambiente favorável ao desenvolvimento de novas ideias, resoluções e soluções para as novas problemáticas e necessidades surgidas desde a “internacionalização” de Atenas a partir das guerras que a cidade teve de travar. Estes sofistas que, partindo de uma percepção da necessidade de uma maior participação da população na tomada de decisões e atividades políticas, ofereceram, como vimos no capítulo anterior, um produto que permitia esta mobilidade e acessibilidade às esferas do poder na política da cidade – a educação. Embora Jaeger aponte os sofistas como educadores das bases elitistas, a educação, como ele mesmo afirma, era abrangente e disponível a todos que desejassem tê-la e, como ele mesmo enfatiza, os atenienses passavam por um momento de franca expansão econômica e cultural, em contato com os persas, viabilizando, deste modo, o acesso de todos (JAEGER, 1994, p. 339). Torna-se, realmente, importante tal mobilidade por vários fatores e razões e, dentre elas, a “econômica que tem sido descrita como uma passagem da economia de uma cidade-estado para a economia de um império” (KERFERD, 1999, p. 32).
Uma economia que, outrora, se encontrava em estado de funcionamento voltado para as questões internas, sofre uma drástica mudança, de forma mais efetiva, com as guerras, como nos revela Jaeger: “Esta necessidade se fez sentir mais desde a entrada de Atenas no mundo internacional, com a economia, o comércio e a política subsequentes às guerras contra os Persas” (JAEGER, 1994, p. 339). E, desde então, temos uma Grécia mais cosmopolita e abrangente em termos de formação de sua população e origens desta massa demográfica então em evidência.
Tais mudanças no acesso à educação propiciaram uma significativa e notória alteração nas relações políticas e na composição das esferas de poder e suas adjacências. O temor de uma possível dissolução da exclusividade do poder e cargos de destaque, que eram comumente divididos entre as camadas oligárquica, plutocrática e aristocrática, alijavam as camadas mais populares deste ambiente, fazendo com que vários personagens da história intelectual sofista fossem definitivamente expostos, alvejados e, por fim, martirizados. Eventualmente, tal processo requereu uma ferramenta – que foi a educação – que o movimento sofista veio a inserir e espraiar no seio da sociedade grega através de um movimento que surge, exatamente, a partir da consciência da existência desta carência na sociedade ateniense. Por isto, segundo investigação de Kerferd, “estava já suficientemente estabelecida outra função – a de treinar mais professores que deveriam, por sua vez, tornar-se sofistas profissionais” (1999, p. 35), pois, para um movimento amplo e revolucionário quanto este, os alcances deveriam ser expandidos e exauridos ao extremo, a partir da expansão da qualificação do profissional aqui em questão.
É uma unanimidade entre os autores que trabalharam a temática dos sofistas, discutirem a questão da remuneração enquanto ponto negativo, do ponto de vista dos “filósofos preferenciais”. Mas, concordamos com Guthrie, quando ele expõe a assertória de Isócrates, considerando que, apesar de todos os ataques dos filósofos ao fator recepção material de recursos por parte dos sofistas, que sabemos nós ser, desde os tempos mais primórdios, uma necessidade à vida social, para eles “a melhor recompensa de um sofista, diz ele (Isócrates), é ver alguns de seus alunos se tornar cidadãos sábios e respeitados” (1995, p. 39). Por outro lado, é válido trazer à luz uma discussão que deve deixar o âmbito do geral para ser mais específica e direcionada, que é o caso do repúdio socrático-platônico ao pagamento efetuado aos sofistas por parte de quem queria recompensar seus serviços. Também, segundo Guthrie, “estamos acostumados a pensar o ensino como um modo mais respeitável de ganhar a vida, e não havia na Grécia nenhum preconceito contra ganhar a vida como tal” (GUTHRIE, 1995, p. 40).
Também, um detalhe que não pode ser esquecido, é lembrar os fatos isolados que propiciaram este crescente interesse na profissão e no serviço prestado pelo sofista neste período em Atenas:
1) Condições favoráveis para a sustentabilidade profissional e financeira de um sofista, haja vista que o que se ofertava por parte dos sofistas era altamente procurado e os pagamentos prometiam compensar os esforços.Também vale lembrar que o ambiente já bastante propício para a difusão intelectual era convidativo;
2) Um patronato forte e motivado dentro da categoria nobiliárquica, oligárquica e aristocrática que, assim como a sociedade, também estava dividida no tocante a suas opiniões quanto ao imaginário das benesses ou não, trazidas pelos sofistas. Temos como bons exemplos as atuações históricas de Péricles e Cálias, em relação aos sofistas;
3) A probabilidade de um sofista poder camuflar, se necessário fosse, a sua prática sofista, atribuindo-se outras atuações que não a de sofista per se. Em caso de problemas de interpretação de suas ações, um sofista poderia, habilmente, abdicar de sua posição de sofista em detrimento de uma ocupação mais aceitável por parte dos acusadores, pois, após as ações de alguns filósofos, após determinadas correlações, o termo sofista passou a ter conotações pejorativas[1].
Então, mais uma vez, de um fato aparentemente negativo como as perseguições e taxações pouco positivas, o caráter sofista se renova com fortes indícios de firmeza e autoafirmação pelo propósito maior que é a educação e a transformação da realidade social, em níveis político e cultural. Excluindo o que, naturalmente, ocorre em todos os seguimentos profissionais, já que sabemos, que assim como existiam maus filósofos, existiam também “maus sofistas, mas, os que fazem uso adequado da filosofia não devem ser culpados pelos poucos carneiros pretos” (GUTHRIE, 1995, p. 39). Após excluirmos um pequeno contingente de maus filósofos e sofistas, encontraremos, em afirmativas como a de Protágoras – que assumia seu posicionamento e orientação filosófica como sofista– mostrando que as consequências de suas escolhas devem ser claras e fundamentadas na manutenção de sua realidade profissional, dentro do sistema social vigente. Não é porque acham ruim ou indigno que determinada profissão seja executada que eu, por exemplo, enquanto ser executor desta profissão, deva me sentir mal por executá-la. Muito pelo contrário, devo permitir-me colher os louros do prazer de fazer o que me agrada, sem importa-me com os juízos de valor que fazem acerca de minhas ações. Devo, antes de tudo, ter em mente que minha opinião acerca da execução de meu labor esteja, de fato, conectada à utilidade pública e o fato de que sua execução não prejudica e nem prejudicará, posteriormente, a outrem em nenhuma circunstância. Preenchendo tais quesitos, como é o caso dos sofistas aqui tratados, as críticas externas tornar-se-ão, como estamos mostrando, lacônicas por si mesmas.

2.2- RETÓRICA, O CARRO-CHEFE DO MOVIMENTO SOFISTA

É exatamente nesta altura, para dimensionar com mais ênfase e precisão a grandiosidade do movimento aqui trabalhado, que devemos dirigir a nossa atenção para o grande diferencial dos sofistas na prática da construção do conhecimento. Segundo Górgias, citado por Guthrie, o conhecimento seria oriundo da “retórica que era a arte-mestra a que todas as outras devem acatar” (GUTHRIE, 1995, p. 40).
De um ponto de vista temporal destes coetâneos da filosofia socrático-platônica, a importância dada pelos seus concidadãos áticos à sua referida importância retórica, no tocante à techné (técnica/arte) discursiva dos sofistas, se equiparam (ou talvez, perpasse, quem saberá?) ao valor do logos (razão) da dúvida socrática.Isto é dito com base na aceitação da retórica como recurso de aprendizagem ante a condenação inicial do logos socrático, fundamentado em sua consciência. Assim, há de se considerar que,nos sofistas,“(...) os seus pressupostos pedagógicos eram tão justos como a dúvida racional de Sócrates. Na realidade, referiam-se a algo fundamentalmente distinto” (JAEGER, 1994, p. 341). Acreditava-se, por parte dos sofistas, que esta atitude de focar os esforços intelectuais para aretë da retórica forçaria, inevitavelmente, a busca pelo conhecimento não somente do bem falar, mas, sobretudo, do bem conhecer, para poder, então, com propriedade, de fato, falar. A opinião tem aqui uma dimensão completamente importante, pois exerce papel central no processo de apreensão do conhecimento (como vimos acima), porém, ela também se ocupava de vários outros assuntos a serem discutidos a partir das impressões primárias e concernentes à vida social citadina. Naturalmente, homens com aptidões para a discussão dialética, fundamentada nas habilidades do dissoi logoi (das discussões com dupla racionalidade e atenção às significâncias polares) estavam também aptos a exercer a política segundo os nomoi estabelecidos e “(...) tinham de criar as leis do Estado e, além da experiência da vida política, era-lhes indispensável uma intelecção universal da essência das coisas humanas (...)” (JAEGER, 1994, p. 339), por exemplo. Isto porque, neste exato contexto da história ateniense, os sofistas não apenas estavam preocupados com a educação, porém, acima de tudo, estavam voltados para os assuntos que traziam e faziam sentir pela “primeira vez que o aspecto intelectual do Homem se situava vigorosamente no centro. Foi daqui que brotou a tarefa educativa que os sofistas buscaram resolver” (JAEGER, 1994, p. 341).
A tarefa, dita educativa, que os sofistas primavam e buscaram exaustivamente fincar nas bases da sociedade grega, está claramente mesclada ao método que envolve a prática e desenvolvimento da oratória. Dito de outra maneira, “não é de surpreender que uma parte essencial da educação oferecida fosse treinar na arte do discurso persuasivo” (KERFERD, 1999, p. 35). Embora saibamos que Jaeger irá ampliar e afirmar que “deparamos nos sofistas com duas modalidades distintas de educação do espírito: a transmissão de um saber enciclopédico e a formação do espírito nos seus diversos campos” (JAEGER, 1994, p. 342).
Naturalmente, este postulado, por sua vez, está voltado para a reafirmação da importância da interpretação de cada ser, a partir de sua própria visão de mundo. Se não for demasiadamente anacrônico, ao menos será sensato perceber que, embora o conceito de subjetividade não tivesse aqui sua fundação institucionalizada, tem seu emprego garantido e difundido pelos sofistas que vão valorizar as “verdades”, enquanto tradução da realidade de todos como válidas e passíveis de análise e consideração, o que, para nós, historiadores da atualidade, seria uma visível alusão análoga às discussões e condições paradigmáticas da atualidade vigente, digo, pós-modernismo e tradição iluminista, ou ainda, em outras palavras, dentro da ciência historicamente fundada com atribuição aos sofistas – a pedagogia – a escola tradicional ante a escola progressiva.
Mas dentro deste cenário, havia também o fato negativo da perseguição aos inovadores e pensadores, como em todos os casos de iluminismos[2] das sociedades, através da história. Neste sentido, tanto filósofos quanto sofistas foram, em determinado momento e em certa medida, perseguidos por representarem perigo para a prática instituída no nomos (regra) comportamental – basicamente vinculado às leis humanas e divinas – que eram questionadas pelas novas proposições iluministas. É por isto que, neste período, o que se vê são fortes indícios “de que houve toda uma série de processos contra filósofos e outros em Atenas, na segunda metade do século V a.C., geralmente sob acusação de Asebeia ou impiedade (KERFERD, 1999, p. 41). Daí a célebre afirmação de Aristóteles, citada por Guthrie, que diz o quão perigosa é a atividade do sofista[3] que, por vezes, poderiam aliviar-se das tensões com a sensação do favorecimento político de Péricles[4], já que “(...) os sofistas foram considerados como as maiores celebridades do espírito grego de cada cidade (...).” (JAEGER, 1994, p. 347), sendo natural que fossem, assim, protegidos, de alguma forma, pelos amantes do saber.

2.3- A RETÓRICA E O RELATIVISMO: quais novidades trouxeram?

Segundo Protágoras, Górgias, Antífon, Plutarco e tantos outros pensadores, a relação da retórica com a mente é da mesma proporção de cura ao corpo pela medicina. De volta à retórica que ditou o ritmo do desenvolvimento do movimento sofista, nota-se amplamente que é justamente quando Górgias afirma a supremacia da retórica sobre as outras artes e demonstra como a validade ideológica pode ser verbalmente realçada, manipulada, se bem usada, é que temos o auge do uso do logos como discurso. É deveras válido afirmar que a palavra dispõe de um poder que:
(...)tem a mesma relação com a mente que as drogas têm para com o corpo. Assim como as drogas eliminam diversos humores do corpo e algumas põem termo à doença e outras à vida, assim também as palavras podem induzir alegria ou tristeza, temor ou confiança, ou, de má persuasão, drogar e se apoderar da mente (GÓRGIAS, apud GUTHRIE, 1995, p. 159).
Assim como, através da palavra, Antífon aprendeu “a arte de consolar” usando o logos – verbalização retórica –, muitos outros sofistas e não sofistas perceberam que o recurso retórico serve a vários outros propósitos, o que posteriormente será atacado pela sua duplicidade utilitária[5] – bem e mal – do ponto de vista eleático. Mas, majoritariamente, será usado pelos sofistas para “semear” (GUTHRIE, 1995, p. 159) o conhecimento e a difusão dele. Para Jaeger, a retórica “reside antes de mais nada na judiciosa aptidão para proferir palavras decisivas e bem fundamentadas[6] (1994, p. 340), buscando sempre a produção de um ambiente favorável à todo o tipo de bom conhecimento que será apresentado por Kerferd como “mudança que estava se realizando” e “era, ao mesmo tempo, social e política, de um lado, e intelectual de outro” (KERFERD,1999, p. 44).
Após o uso consecutivo do logos, é necessário fazer, minimamente, uma alusão a sua significância e carga simbólica, que são bastante variadas, no tocante à interpretação e/ou leitura que se pode fazer desta palavra tão polissêmica. Esta polissemia pode ser traduzida com três diferentes alcances[7]: grosso modo, como discurso, forma de expressar linguístico; então, em seguida, como racionalidade e capacidades cognitivas em geral, possibilidade de, através desta capacidade, exprimir juízos e explanações; e, por fim, como complexos surgidos a partir de nossas cosmovisões conjunturais, representações etc.
Bem neste ponto, o relativismo, antes nunca exposto nas condições em que vimos nas passagens supramencionadas, toma conta dos logoi sofistas (discursos) e é a principal causa das disputas entre filósofos e sofistas, mas, por outro lado, como também já vimos, torna-se o foco das atenções por propor, muito fundamentadamente em alguns nomes como Protágoras e Górgias, novas ideias e traduções da realidade. Assim, dentro destas possibilidades, os diferentes logoi insinuar-se-ão para nós como o único meio formal de apreensão da realidade a partir de outro indivíduo. Sabemos, hoje, que a gesticulação serve de meio de comunicação, que a escrita idem e que uma gama ampla de símbolos podem substituir facilmente o discurso, do ponto de vista prático. Porém, vale lembrar que nem sempre foi assim. Que nem sempre o dom da fala esteve presente entre nós, mas é justamente aqui que temos o diferencial entre os outros animais.
No entanto, a retórica, como o logos (discurso) naturalmente dado a partir do conhecedor de determinado objeto, visando a transmissão do seu conhecimento para outrem, é de inestimável valor. E, dentro deste quesito, o domínio do logos pelos sofistas já foi mais que apresentado neste trabalho.
Então, teremos como grandes contributos dos sofistas, para além de todos que aqui já enumeramos, o probabilismo da interpretação logoíca e o caráter dual, constante, de toda e qualquer interpretação/tradução de uma dada realidade[8]. Seguindo esta linha de raciocínio, os questionamentos impostos pelos sofistas como: as organizações sociais normatizadas, ditas “dentro do esperado” (nomos), ante a naturalidade do comportamento instintivo e imanente do homem, concedido pela natureza (physis), por exemplo, fazem uma revolução intelectual. Esta contraposição de tendências de ambas as correntes – filósofos e sofistas –gerará uma profícua discussão sobre a realidade ante a aparência da realidade, a verdade frente ao simulacro.
Os sofistas trouxeram, em sua época, uma transformação que perpassa a expectativa de uma verdade imutável e generalizante que, de fato, não alcança nunca e nem nunca alcançaria a descrição completa da complexa realidade material dos objetos tratados. Sabemos que toda realidade tratada é sempre mais complexa e problemática na prática do que o que se apresenta em uma tentativa de explicação globalizante, fundada em teorias totalizantes. Por isto, as probabilidades sofistas, a nosso ver, aparecem como o mais próximo possível de uma realidade aceitável, pois, traduzem o ideal sempre parcial da ciência que é feita de verdades acumuladas e tinham sempre “o provável (ou aparente, plausível, eikota) em maior honra que o verdadeiro”, ou seja: “(...) descobriram que a probabilidade deve ser tida em maior apreço do que a verdade, pois só com os recursos da palavra fazem o pequeno parecer grande, e o inverso: o grande parecer pequeno (...)” (PLATÃO, 2007, p. 100 (267a-b)). Então, voltamos ao ponto da subjetividade aceita e respeitada, da perspectiva sofística.
Seguramente concordamos com Jaeger, quando ele afirma que estes contributos são mais notórios ainda se considerarmos a variedade das aplicações dos conhecimentos dos sofistas propriamente ditos. Estes não eram apenas exímios oradores e/ou sequiosos homens em busca do status quo da política de suas civitas, eram, também, indivíduos capazes de aplicar seus conhecimentos em prol da melhoria espiritual, busca pelo conhecimento adequado às distintas situações. Tal mescla de saberes e técnicas aplicadas, como nós já havíamos mencionado anteriormente, implica em ver a sofística em toda sua amplitude. Numa escala de apreensão da episteme (conhecimento metodizado), teríamos: Filosofia de um lado (Tese), do outro a Sofística (Antítese) e, por fim, a Educação, resultado científico deste embate dialético (Síntese). Se lembrarmos também as frases mais significativas deste autor, no que tange a sua avaliação do movimento sofista, ele nos dirá que “nunca podemos deixar de nos maravilhar diante da riqueza dos novos e perenes conhecimentos educativos que os sofistas trouxeram ao mundo” (JAEGER, 1994, p. 343). Contudo, direcionar esta afirmativa apenas à educação é demasiado reducionista e pouco justo com todas as vertentes exploradas pelos conhecimentos emanados deste movimento como um todo. Sendo assim,
(...) a nova educação, (...) ultrapassava o meramente formal e material e atacava os problemas mais profundos da moralidade e do Estado, se arriscava a cair em maiores parcialidades, caso não se fundamentasse numa investigação séria e num pensamento filosófico rigoroso (...) ( JAEGER, 1994, p. 343).
Foram tantos os nomes que perceberam a importância da relativização factual e cognitiva que, se formos elencá-los aqui, teríamos um número maior de páginas escritas destes relativistas do que de discussões e apresentações das características do movimento em questão. Em outras palavras, foi a relativização factual que permitiu a Marx reverter Hegel e chegar ao materialismo histórico e dialético, por exemplo, assim como a inversão das generalizações dos filósofos levaram a expansão do conhecimento no aufklärung grego com a intervenção sofista. Se não fosse assim, não nos teria chegado a afirmação de Sexto Empírico confirmando que “ a verdade é algo de relativo, porque tudo o que pareceu ou que foi crido por alguém[9] é de imediato real em relação a ele” (SEXTO EMPÍRICO, apud GUTHRIE, 1995, p. 159).Portanto, há de se reconhecer a importância e autoridade do relativismo sofístico, no limiar da história da Grécia antiga, como estágio de acesso ao conhecimento humano geral, pois“ (...) não podemos afirmar e admirar os novos estágios sem que neles estejam assumidos os primeiros”, e aqui, os primeiros foram, segundo Jaeger, os sofistas (1994, p. 355).



[1] O que é possível verificar nas afirmativas de GUTHRIE, W. K. C. na obra Os sofistas, 1995. III cap. pp. 33-55.
[2] Aqui me utilizo do sentido lato de iluminismo oriundo da orientação filosófica que lê as revoluções racionais de distintas sociedades baseadas no conceito alemão de Aufklärung.
[3] Para maiores detalhes sobre os perigos da profissão sofista ver: Guthrie, B. O movimento sofista,1999. p. 43.
[4] Id. Ibid.
[5] Para apoio sobre esta duplicidade da utilidade do logos veja GUTHRIE, W. K. C. Os sofistas – São Paulo :Paulus, 1995. Ver também: JAEGER, Werner Wilhelm. Paideia : a formação do homem grego. – 3ª ed. – São Paulo : Martins Fontes, 1994. E por fim: KERFERD, G. B. O movimento sofista. São Paulo : Edições Loyola, 1999.
[6] Grifo nosso.
[7] Para tal abordagem veja KERFERD, G. B. O movimento sofista. São Paulo : Edições Loyola, 1999. p. 144.
[8]Encontram-se detalhes mais incisivos sobre esta questão em GUTHRIE, W. K. C. Os sofistas, 1995. p. 169.
[9] Grifo mantido.
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BIBLIOGRAFIA
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_____. “Sofista”. In: Coleção Os Pensadores. Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

A História da Educação Segundo os Sofístas


A sofística numa perspectiva histórico-filosófica

BADARÓ, Wilson Oliveira

“A educação profissional, herdada do pai pelo filho que lhe seguia o ofício ou a indústria, não se podia comparar à educação total de espírito e de corpo do nobre (...)”.
(JAEGER, 1994, p. 336)

Introdução

No decorrer deste trabalho, abordaremos a representatividade emblemática e perceptível da sofística, dentro dos moldes de uma tradição ocidental, retratando algumas passagens do período compreendido entre os séculos V e IV a.C. na Grécia antiga, e contrapondo fatos, na medida em que nos permitam os indícios. Esta tradição que, desde uma ótica historicamente cimentada, resolveu ofuscar e dificultar – no mais das vezes – uma leitura mais nítida e menos polarizada da real contribuição e ação destes personagens históricos chamados de sofistas. A polarização proposta aqui está referendada no alijamento dos sofistas de sua contribuição, no tocante a sua contraposição aos “filósofos preferenciais”[1] e sua pretensa hegemonia cognitiva em prol da racionalidade e da verdade. Justamente dentro desta perspectiva voltada para a oposição à imposição da tradição, guiaremos nossos esforços intelectuais no sentido de iluminar novas abordagens e olhares a partir de críticas reflexivas às assertórias socrático-platônicas que visaram no passado denegrir a imagem de seus ditos opositores – os sofistas.
Sabemos que a sofística, tendo a eloquência na verbalização, a retórica como arma da erística[2] e sua poderosa difusão no meio social coetâneo em que atuavam, vem transformar a realidade de seu tempo e os rumos de toda uma forma de pensar, de agir, de falar, de comportar-se e, sobretudo, de conduzir diálogos em seus contextos históricos. Assim sendo, estavam visando sempre um bom desempenho oratório – de si mesmos e daqueles que com eles aprendiam – também para a política, sobretudo, para exercer maiores influências em sua sociedade e alcançar maior prestígio e respeito social.
Lembrando que a atuação dos sofistas está altamente vinculada ao seu propósito profissional que é, também, direta ou indiretamente, democrático, do ponto de vista educacional, pois, como educadores da época, fomentaram a cultura, popularizaram a educação e tornaram os meios de ascensão e mobilidade sociais mais tangíveis e acessíveis a todas as faixas constituintes da sociedade grega. Um dos grandes exemplos disto é a atuação transformadora de Péricles em favor da difusão dos conhecimentos e métodos sofísticos dentro da Grécia sob sua tutela, levando a uma profusão dos sofistas e, consequentemente, de sua “educação causal” e/ou “condicional”, a todos os que quisessem e pudessem pagar por ela. Tal atitude de disseminação da prática sofista incentivou a Grécia daquela época e modificou consideravelmente o panorama do meio erudito social grego, já que os principais focos do empenho deste movimento sofista se voltavam para as considerações e reflexões antropológicas e toda a problemática que envolvia as relações sociais, políticas e culturais da Grécia antiga[3];o confronto visível entre doxa e alétheia, respectivamente opinião e verdade, sendo a primeira uma prática comum por parte dos sofistas em sua erística – segundo a tradição – e a segunda, corrente levada ao extremo pelo principal opositor dos sofistas, o dialético Platão e seu mundo das ideias. E, por último, mas, não menos importante, a transformação/adequação da benevolência/bem em utilitarismo/praticidade em favor de uma vida voltada para as soluções que envolvem a noção ampla do quão relativo é a moralidade e a verdade pregada anacronicamente pelos seus opositores – os “filósofos preferenciais”.
Temos o perfeito conhecimento das dificuldades porvir, em se tratando de apresentar uma diferente proposta de leitura de uma realidade tão engessada dentro das tradições histórico-filosóficas, relacionando-a com a interpretação de outra possibilidade histórica, advinda do movimento sofista. Entendemos esta dificuldade no que tange a questão das fontes disponíveis, uma vez que, são elas, em sua maioria, oriundas justamente da visão de mundo – sempre opositora – de seus maiores rivais. Assim, devemos manter em mente o quanto é difícil a exposição de uma visão diferente, em adição a já estabelecida interpretação tradicional há tanto tempo dentro dos conhecimentos tidos como dados no meio acadêmico e,até mesmo, fora dele.Contudo, estas visões não se excluem mutuamente, ao contrário, complementam-se. Sabemos também, de antemão, como prega o campo de conhecimento e investigação histórica, que os fenômenos sociais e suas estruturas, dentro da análise temporal, são de maior lentidão em suas transformações no campo das mentalidades e do imaginário social[4]. Tal transformação pertence ao tempo da longa duração e não será tão subitamente mudado por uma apresentação circunstancial ou outra, por mais patente que seja seu conteúdo, mas, é esta a intenção, a saber, colaborar com os processos de transformação do longo período, na medida em que incutimos novas abordagens a um mesmo objeto, revelando novas possibilidades e novas tendências da história e da filosofia como um todo.
Num processo nítido de dissoi logoi[5], faremos uma análise das opiniões favoráveis à hermenêutica socrático-platônica e, também, com o mesmo conceito hermenêutico, consideramos os textos mais relevantes na descrição do movimento sofista de forma a expor seu caráter fenomênico dentro do contexto proposto e abordado. Perceberemos em que proporção as críticas socrático-platônicas firmaram opiniões, de fato, relevantes, sobre o movimento sofista dentro da sociedade e educação gregas. Refutaremos aquelas que nos pareçam tendenciosas e passíveis de uma nova leitura e perspectiva mais positiva, obedecendo,naturalmente,às evidências deixadas e constatadas por especialistas.
A visão dos especialistas é a de um campo aberto, inexplorado, que pôde e foi explorado pelos sofistas, uma vez que a educação carecia de iniciativa privada, embora, todos os esforços dos líderes da sociedade grega para “tornar comum”, de forma estatal, a educação voltava-se, basicamente, também, para a manutenção das linhagens já historicamente dominantes na Ática. Deste modo, vejamos o que fizeram os sofistas para mudar este quadro de deficiência educacional da Grécia e como se deu este processo em meio às turbulentas disputas intelectuais dos filósofos para com os sofistas.



1-    A importância da compreensão de uma educação historicamente preconizada pelos sofistas

“A educação, que precisa de uma norma como ponto de partida, num momento em que todas as normas válidas para o homem se dissolvem nas suas mãos, fixa-se na forma humana, torna-se formal” (JAEGER, 1994, p. 352).

1.1-            EDUCAÇÃO E PRIVILÉGIO

Segundo a tradição historiográfica e filosófica, se aceita a afirmação de que a segunda metade do século V a.C. (450-400) foi a “idade de ouro” para os gregos, período no qual a difusão de novos valores e tendências nos campos da política, cultura e artes se tornou uma constante na vida desse povo. Tais mudanças trouxeram um comportamento mais crítico e cético por parte dos arautos deste dito “iluminismo grego”. Este iluminismo pretenso correspondeu a uma gama de processos dialéticos e logóicos[6]entre os “filósofos preferenciais”, sofistas e suas diferentes visões de mundo e do próprio mundo, então em efervescência. Tal efervescência correspondia às demandas de novos ares que conduziriam a sociedade grega ao “(...) Iluminismo uma família de filósofos, (que) era também algo mais: um clima cultural, um mundo em que os filósofos agiam rebelando-se contra ele com alarido ou tirando dele silenciosamente muitas de suas ideias (...)” (GAY, 1967, p. XII). Uma série de representações antigas, comportamentos, “crenças e valores das gerações anteriores eram criticados. O movimento sofista representava tudo isto” (KERFERD, 1999, p. 10).
Este movimento[7]– o sofista – veio para encabeçar as novas demandas sociais que, por sua vez, tendiam a equilibrar as possibilidades com a realidade de fato notada. Possibilidade de ser algo diferente do preestabelecido pela imobilidade social imposta, de fazer uma nova trilha para a vida através da educação, de ocupar espaços antes nunca ocupados pelas camadas populares desta sociedade em virtude de uma tradição embasada na “manutenção dos bem-nascidos”e de sua alta capacitação e herança superior transmitidas consanguineamente e divinamente. O grande desafio sofista estava no âmbito de mostrar que era possível a“(...) superação dos privilégios da antiga educação para qual a arete só era acessível aos que tinham sangue divino” (JAEGER, 1994, p. 337).

1.2-            EDUCAR PARA TRANSFORMAR

Então, a educação surge como aparelho de transformação e acesso desta realidade, tanto para os sofistas, que seriam os executores desta educação de longo alcance, como para o próprio povo, receptáculo ávido deste novo aparelho, agente atuante na manutenção, formação e profusão deste e, sobretudo, consumidor e razão maior para a permanência da prática sofista no quesito educar. Segundo Jaeger, para suprir as “(...) necessidades mais profundas da vida do Estado que nasceu a ideia da educação, a qual reconheceu no saber a nova e poderosa força espiritual daquele tempo para a formação de homens (...) (JAEGER, 1994, p. 337)”.
Partindo destas complicadas críticas à teologia utilitarista estabelecida e de uma justiça que impunha os valores éticos e morais que deveriam ser seguidos, os sofistas irão estabelecer questionamentos aos conceitos de verdade da filosofia corrente. E, como é possível perceber, o “problema das relações Estado-espírito, pressuposto necessário à existência da sofistica (...)”[8] já estava posto neste mesmo Estado. Naturalmente, criticando o conteúdo das verdades da época, estaremos contribuindo para ressignificá-las ou, ao menos, estaremos ressaltando a ideia de que questionar é preciso. As inquietações dos sofistas trazem à tona a sensação geral de que a virtude – nisto se inclui a Arete (arte), a sophia (conhecimento, saber) e a technë (técnica) –, antes apenas vista como uma característica inata de seres privilegiados, e estes privilegiados representavam uma pequena parcela da sociedade, agora faz parte de “ruinosas implicações da doutrina segundo a qual a virtude pode ser ensinada (...).” (KERFERD, 1999, p. 11). O que se quer dizer com isso é que os indivíduos passaram a ter a possibilidade concreta de, pela via da educação, mudar a sua condição social.
E é justamente nesta altura que imaginamos as repercussões que tal inovação (novas possibilidades de apreensão da realidade) trouxe para a sociedade grega antiga. Uma reforma nos moldes e na composição humana do quadro político, administrativo e judicial se fez presente nas interpretações e visualizações das camadas dominantes da polis grega. Portanto, a questão que se coloca é a seguinte: que “deve ser ensinado, por quem e a quem deve ser ensinado”(KERFERD, 1999, p. 11).
Parece sensato pensar que até mesmo o próprio Platão, apesar de todas as suas ferrenhas e agressivas investidas, irá perceber o potencial educativo de cada sofista e, até mesmo, dos menos rebuscados deles. Segundo Kerferd, as descrições apresentadas a nós, dos sofistas, por parte de Platão[9], são num total de sete (Platão as divide em seis), onde, para nós, quatro se apresentam como reveladoras. A segunda é uma delas (“o comerciante em ciências”), e diz o seguinte: “como homem que vende ‘virtude’ e, visto que vende bens que não lhe pertencem, como um homem que pode ser descrito como mercador do ensino”(1999, p. 14);a terceira e a quarta (“pequeno comerciante de primeira ou de segunda mão”), onde o sofista “vende a varejo em pequenas quantidades”(1999, p. 14); e,por fim, no entender de Kerferd, a sétima: “o sofista é visto como o falsificador da filosofia, construindo, de maneira ignorante, contradições baseadas mais em aparências e opiniões do que na realidade” (1999, p. 15). Renumerando aqui as descrições que nos interessam, a primeira nos parece uma atitude um tanto possessiva por parte de Platão quanto ao direito da detenção ou não do conhecimento e da virtude. Os ditos “bens que não lhe pertencem” – as virtudes no caso – parecem ser de propriedade de uma parte da sociedade que apenas Platão e seus pares conhecem e podem validar, refletindo a primeira exposição conservadora de uma sociedade necessariamente estratificada e definida historicamente. Apenas ele, Platão ou qualquer outro que não fosse um sofista estaria habilitado a dispor do conhecimento e virtude como algo de fato a si pertencente? E mesmo no caso destes bens não lhe serem de direito, se Platão reconhece que eles, os sofistas, os vendem, ainda que ilicitamente, são detentores em alguma medida de virtudes e conhecimentos. Pois, como vender o que não se tem? Esta é a parte curiosa do discurso de Platão. Contudo, em seu complemento de raciocínio, ele irá afirmar o que dizemos: que este homem que vende o que supostamente não lhe pertence é um “mercador do ensino”. Reconhecendo aqui a capacidade sofista de ensinar.
Na segunda descrição, Platão atribui aos sofistas um caráter de “loteadores” da virtude e do conhecimento, por venderem pedaços dela, reafirma o que dissemos acima e nos relembra os sistemas educacionais atuais em todos os segmentos da educação e em todos os tempos da história vivida até aqui. As “pequenas quantidades” as quais se refere Platão, naturalmente, seriam entendidas pelos seus sectários e porta-vozes apenas como diminuta, por ser diminuto o conhecimento de seus provedores, ao passo que estes, por não deterem muito da virtude, pouco poderiam ofertar.
Na terceira/quarta descrição platônica sobre os sofistas e sua relação com a filosofia, os “falseadores da filosofia” contradizem as regras estabelecidas e fundadas em tradições antigas. Partem de suas impressões – em sua maioria, assim cria Platão – “falhas e descontextualizadas” para modificar aquilo que não ajudaram a construir e agem como agentes externos aos princípios da moralidade humana por se venderem e venderem os “bens de outrem” – neste caso a virtude e o conhecimento filosófico. Mas é muito natural que assim o seja, que as novidades partam de impressões externas, porque, a realidade dada naquele momento histórico era de caráter incontestável, já que a organização social já estava estabelecida, assim como a prática do escravismo que se encontrava em estágio institucional na Grécia, por exemplo. Muito provavelmente, Parmênides, Górgias, Protágoras, Hípias e tantos outros sophistai poderiam inverter os papéis e colocar Platão e outros filósofos preferenciais conservadores como Aristófanes – que irá dar as piores atribuições possíveis aos sofistas[10] – no patamar de “falseadores” do conhecimento, justamente por desprender excessiva atenção e esforço intelectual apenas para afetar outro alguém. Poder-se-ia utilizar tal tempo em atividades mais científicas como as atividades do “(...) tempo de Isócrates e de Platão, (...)” (JAEGER, 1994, p. 335) onde “(...) está perfeitamente estabelecida esta nova e ampla concepção da ideia de educação” (JAEGER, 1994, p. 335) que naturalmente, como supramencionado, fora iniciada e promovida pelos sofistas.

1.3-            O CONHECIMENTO E SEU ACESSO: Tese, Antítese e Síntese

Discussões mais amplas partidas deste embate vê-se na leitura de Jaeger quando refere-se à Kalokagathia (bom e belo ou bom e virtuoso) como o primeiro esboço de uma dicotomia porvir: Doxa X Alethéia, que surgiria com a oposição sofista, no sentido de servir como forma de apreensão do conhecimento através do antagonismo – tese, antítese e síntese.
É notório o nível de insatisfação dos ditos “filósofos preferenciais” para com os sofistas. Acreditamos que, se estes – os sofistas – não dispusessem de um arcabouço intelectual coerente e admirável, obviamente os “filósofos preferenciais” não se incomodariam tanto. Até mesmo porque, sem muito conhecimento, logo sua incapacidade, incompetência, desconhecimento, dissimulação e mera “intenção financeira” pura e ambiciosa, ficariam visíveis para a população e evidenciariam o caráter provisório e limitado destes indivíduos. Mas, ao que parece, este não foi o caso. Seu sucesso na empresa educacional é notório e, por muitos, é tido como a razão que força os “filósofos preferenciais” a melhorarem seus contra-argumentos, ataques, conhecimentos e teorização das múltiplas realidades vigentes em toda Ática. Dito de outra forma, os sofistas não só fizeram parte desta chamada “idade de ouro” da Grécia “ilustrada”, como foram os precursores desta “ilustração”: “prova disto é o pensamento dos grandes educadores e filósofos nascido daquela experiência ter conseguido prontas soluções, que transcendem ousadamente as formas existentes do estado e cuja fecundidade é inesgotável (...)” (JAEGER, 1994, p. 338).
Assim, como por consequência, o que temos em foco é um sofista reconhecidamente atuante, historicamente ativo e transformador, seguindo a proposição hegeliana, onde a relatividade e parcialidade da verdade são patentes[11](KERFERD, 1999, p. 17). Como diz Ciro Flamarion Cardoso, a ciência é processo cumulativo de verdades parciais que buscam aproximar-se o mais possível de uma verdade aceitável[12] (CARDOSO, 1989, p. 17).Em outras palavras, a verdade total, axiomática e irrefutável proposta pelos “filósofos preferenciais”, não é possível e, até o presente momento, nunca existiu. Por isto, os sofistas e suas “meias verdades”, “verdades aparentes”, cumprem o papel de “parcialmente verdadeiro e parcialmente falso” de que falam os cientistas das ciências humanas e, também, o próprio Kerferd (1999, p. 18).
É neste ponto que propomos a sempre conhecida serialização do ensino em toda história. Ninguém recebe um conhecimento como um chip (circuito integrado capaz de realizar várias diferentes funções e portador de uma inteligência constituída) portátil, contendo todo o conhecimento e virtude acerca de uma technë (técnica) ou aretë (arte). Ninguém absorve de uma só vez todo o conteúdo de um assunto discutido, senão por parceladas quantias tidas como aceitas para a absorção natural e gradual do cérebro humano. Assim, pelo que vimos, parece que Platão também percebeu este cuidado e virtude em relação à transmissão do conhecimento de forma gradativa e compassada, escolhida pelos sofistas. Se este formato de fragmentar o conhecimento e a virtude para a sua melhor absorção não é o ideal, então o que fazemos na atualidade ainda com este modelo em plena vigência e prática? Se não foi isto que Platão desejou dizer com as “pequenas quantidades” de virtude, então o “varejo” seria uma confirmação de que se oferece aquilo que se quer adquirir e não um pacote gigantesco no qual nem tudo o que se oferece é o que se quer aprender em suma. Aqui fica claro quem seria aquele que teria maior sensibilidade para ensinar, escolher o que ensinar e para quem ensinar. Ao menos, não havia uma exigência excludente a priori, por parte dos sofistas, do tipo “aqui não entra quem não souber geometria” ou qualquer coisa do tipo…
Após tantos impasses e disputas, é provável que os gregos tenham amplamente optado por dispor de mais uma opinião em meio a tantos sophistes disponíveis na Grécia antiga. As ferramentas sofistas são as mais variadas, e segundo Jaeger,“o objetivo da educação sofista, a formação do espírito, encerra uma extraordinária multiplicidade de processos e de métodos” (1994, p. 342), que poderemos ver mais à frente. Então, é amplamente difundido como parte característica dos ensinamentos sofistas o uso da refutação lógica (Elenchus)[13] e da erística. Em nossa óbvia observância, o que se apresenta são ferramentas clássicas da negação às imposições e dispositivos necessários para uma crítica mais aguda e incisiva nos meios intelectuais. O Elenchus é a definitiva prova metodológica da insubmissão das novas tendências incitadas pelos sofistas aos seus orientados e, eventualmente, deles mesmos ante os nomoi (conjunto de regras) sociais estabelecidos. Deste modo, este processo antilógico é uma oposição voluntária aos ideais propostos neste contexto histórico grego que visam ampliar as probabilidades e fazer valer o ideal democrático da polis ateniense. Por isto, o caráter subjetivo das interpretações e a hermenêutica sofista levou o movimento a dispor também de uma vertente semiótica, cética e, por sua vez, indesejado pelo papel questionador que propôs. Por isto, tinha razão Hegel ao atribuir à subjetividade da interpretação do real e do verdadeiro,  a fortiori, apresentadas pelos “filósofos preferenciais”, como sendo passíveis de questionamentos e transmutações pelos subversores desta realidade dada – os sofistas.
Sendo esta, então, “uma etapa necessária na autodeterminação do pensamento, que é o que era a história da filosofia” (KERFERD, 1999, p. 19), que sem seu antípoda maior – os sofistas, enquanto movimento gerador das inquietações – e não o fato evidente contrário e, até certo ponto, lógico e esperado – a misosofia ou, ainda, a misologia, que seriam as qualidades factualmente relacionáveis aos sofistas a partir da tradição – já que a filosofia se encontra em patamar de “amiga do conhecimento”. É por isto que, não apenas do ponto de vista dos opostos mas, sobretudo, do ponto das construções e produções intelectuais que se deram em ambos os lados, os sofistas devem ser respeitados como geradores de conhecimento e precursores de um movimento de aufklärung superior e necessário ao seu contexto histórico.

1.4-            É POSSÍVEL ENSINAR

Após estas digressões nos fica um único caminho. Apontar para onde sinalizaram os sofistas, no intuito de provar que é possível ensinar. O ofício do sofista, de transmitir um conhecimento ou virtude, contrapõe-se à expectativa socrática de que não seria possível tal transmissão. Tomemos o clássico exemplo da impossibilidade de Péricles em ensinar aos seus filhos a sua aretë de administrador e líder da polis. Mas, ao contrário, deixou-lhes buscar as suas próprias aretë a seu modo e ritmo. Ora, o que Sócrates questiona, se não nos engana a interpretação do seu discurso, é a capacidade de ensinar como se fora o conceito atual de cultura imaterial, ou seja, o “saber fazer” que é algo muito intrínseco, peculiar e específico a cada ser:
(...) Sócrates sugere inocentemente a Anito, importante líder democrático que se tornou seu principal acusador, que os sofistas eram as pessoas adequadas para instilar no jovem a sophia que o adequará para administrar o Estado, governar a cidade, e em geral demonstrar o savoir-faire próprio do cavalheiro (GUTHRIE, 1995, 49).
Assim sendo, virtude, enquanto cultura imaterial ou, como quer Guthrie, savoir-faire, de fato seria impossível transmitir, pois, ela é como a íris dos olhos de cada ser ou as impressões digitais humanas. É única e intransferível e, muito naturalmente, cada pessoa tem uma forma singular de fazer as coisas, de apreender e processar informações etc. É possível fazer de forma idêntica no reino animal e humano, mas, da mesma forma, somente máquinas programadas para produção em série e em escala industrial e, não, seres humanos. Por isto, as antigas guildas de artesãos foram suplantadas pelas máquinas, para os artigos de necessidade mais imediata, mas o verdadeiro artigo de luxo, para apreciação mais detida, requer a sensibilidade e criatividade humanas, sendo que isto ainda é da alçada dos verdadeiros artesãos. Assim é a aretë de ensinar. Ato reflexivo e dialético, humano, que revela o conhecimento de todos sobre algo em particular. É a subjetividade do saber fazer que, de acordo com Kerferd (1999, p. 228), Protágoras passou, de imediato, a anunciar. Declara o sofista que essa participação não é nem por natureza[14] (physis), nem é adquirida espontaneamente, mas por instrução e pela prática: “Assim, do que disseste se infere que os próprios atenienses são de parecer que a virtude pode ser adquirida e ensinada” (PLATÃO, 2002, p. (69 324c)).
Ainda acompanhando a visão de Protágoras com a interpretação de Kerferd, percebe-se, neste contexto histórico, que a virtude como sustentáculo de todos os processos de ensino e aprendizagem é também uma sequência contínua de fatos ou operações que apresentam certa unidade ou que se reproduzem dentro da sociedade. A educação é um percurso socialmente construído e pela sociedade difundida. É aqui que o sentido semiótico da intervenção sofística toma corpo, visto que a sociedade, representada pelo Estado, como disse Michel Foucault (1989, p. 125-130), irá moldar (adoçar) os corpos, a partir de punições que irão adequar os sujeitos às necessidades de suas representações coletivas e leis.Tudo isso é confirmado pelo logos de Protágoras, que identifica que ela – a virtude – também pode ser ensinada por toda comunidade das leis e punições. Diz Protágoras: “Essa maneira de pensar implica a convicção de que a virtude pode ser ensinada. O castigo é aplicado para a coibição do crime: eis o modo de pensar de todas as pessoas que aplicam penalidades, tanto particularmente quanto em público” (PLATÃO, 2002, p.69 (324b-c)).
O interessante é perceber que quando Jaeger nos destacou os aspectos do foco sofista na formação de uma classe dirigente, “(...) a finalidade do movimento educacional comandado pelos sofistas não era a educação do povo, mas a dos chefes” (JAEGER, 1994, p. 339), ele se referia à intencionalidade do sofista como aquele que ensina e que está na condição de professor. Neste caso, como bem sabe Guthrie, o sofista, que era uma personalidade que tinha a opinião sobre si bastante dividida na sociedade, estava em condição de inelegibilidade para cargos políticos e, assim, se realizava na condução e auxílio para o alcance deste patamar por outrem. Em sua condição majoritária de estrangeiros, os sofistas não eram indicados, apesar de sua grande influência, capacidade e competência, para cargos públicos. Aqui, neste ponto, vale lembrar que a prática do ostracismo grego era, em geral, aplicada às figuras que demasiadamente se destacassem no quadro político, podendo, com sua popularidade e “indicabilidade” evidente, ameaçar a estabilidade da dita democracia ateniense e torná-la governo de um homem só. Justamente aqui, terá razão Jaeger que dirá que o ciclo de formação de camadas sociais que exercem forte influência na direção dos assuntos da cidade-estado “(...) não era senão uma nova forma da educação dos nobres” (JAEGER, 1994, p. 339).Acredita Jaeger que esta nova forma é mais ampla, mais abrangente, contudo, continua a se preocupar com a formação das bases dirigentes. A novidade aqui, a nosso ver, é que, no tocante à opinião de Jaeger, é que, apesar da formação estar voltada para as classes dirigentes, há uma grande inovação. Ela deixa de ser uma exclusividade dos bem nascidos e passa a constituir parte do ideário geral da sociedade grega.

1.5-            QUEM PODE E DEVE ENSINAR

Percebe-se que a sensibilidade e percepção sofistas para o ensino estão muito à frente das dos filósofos e o seus ideais de transformação social, por meio do instrumento que é o ensino tangível.
Notadamente, a prática do dissoi logoi em Protágoras fica evidente em suas discussões, no sentido de abranger as formas variadas e objetos também variados de ensino como, por exemplo, a “opinião correta” (orthëdoxa) que “pode ser tão bom guia quanto o conhecimento para a finalidade de agir corretamente” (KERFERD, 1999, p. 233), já que, nem somente o conhecimento dito teórico é válido para a difusão e ensino do saber.
Devemos considerar sempre a parte prática, que está vinculada à metodologia do objeto a ser conhecido e, conclusivamente, a opinião, como um dos passos à cientificidade, deve ser considerada como parte relevante da prática sofista. A opinião, a nosso ver, aproxima-se muito da dedução científica usada como método de apreensão do conhecimento de tudo que se quer conhecer. A opinião é, “grosso modo”, uma dedução imediata e prática do que se conhece superficialmente e se quer conhecer mais a fundo, assim, como no caso dos sofistas, onde sua opinião traduz sua compreensão e visão de mundo que, por sua vez, trata como lhe parece mais conveniente o objeto que deseja tornar conhecido. Assim como tem a opinião um caráter hipotético, todas as fases que necessitamos para cientificizar determinada hipótese (opinião) passam pelos estágios como a observação/verificação, análise, sintetização e enumeração do mesmo objeto ou grupos de objetos. É óbvio que as conclusões possíveis após tais processos são apenas três: a refutação, a comprovação ou a reconstrução da opinião (hipótese) inicial. Vimos tal efeito muito nitidamente no diálogo entre Protágoras e Sócrates, no qual Sócrates sustentava, a princípio, a “opinião” de que a virtude não podia ser ensinada e Protágoras fazia o caminho exatamente inverso (KERFERD, 1999, p. 230). No entanto, em determinado momento deste diálogo, os protagonistas trocam seus posicionamentos, ou seja, agora a opinião de Sócrates acerca da possibilidade do ensino da virtude se torna positiva enquanto, Protágoras, em sua clássica postura silogística de dissoi logoi, agora dá vazão ao sentido contrário a que havia dado início. Com isto, pretendemos mostrar que até mesmo o arquétipo do filósofo, o próprio Sócrates e sua grandiosa maiêutica, valiam-se da opinião como forma de descrição inicial do real e, somente a partir da apresentação/exposição a um outro logos é que pôde ele refutar sua hipótese primária em detrimento de uma mais sensata e aceitável. Obviamente, a reversão do posicionamento de Protágoras tem uma intencionalidade explicita e um fundo teleológico pertinente:
(...) Protágoras está empenhado em explicar é (a) que é possível ensinar a alguém como ser um homem bom, em sentido lato de “ensinar”, que inclui condicionamento nos costumes sociais bem como instrução em técnicas específicas tais como retórica, e (b) que as disposições inalteráveis de caráter, que produzem a conduta especificada como apropriada às várias virtudes particulares (p. ex. ações justas ou corajosas), não são idênticas entre si (KERFERD, 1999, p. 232).
É como havia dito Heráclito, com as afirmações da mutabilidade do homem e do rio; assim seria, também, com o ensino, que se transforma quando é apreendido por outra pessoa que dispõe de uma distinta subjetividade e visão de mundo. Esta não será, depois de apreendida, igual ao do docente. É como a opinião que, com seu caráter provisório e mutável, após processo dialético com a realidade, poderá confirmar-se, refutar-se ou modificar-se. Como vimos no diálogo “socrático-protagórico”, o uso do dissoi logoi (duas formas de racionalizar), fundamentado na validação de ambas as vertentes da interpretação de um mesmo objeto, são altamente validáveis e discutíveis e que desta prática, a única e derradeira certeza é que surgirá algo novo, sintético e mais próximo do real, lembrando sempre que, dentro da ciência, esta verdade axiomática, hoje, é um postulado inaceitável.
Fica firmado, assim, que as intenções educacionais dos sofistas podem ser percebidas como bastante amplas do ponto de vista transformacional e conjuntural, no qual o fim acaba por justificar meios diante de uma sociedade regida por nomos (regulamentação jurídica) comportamentais tradicionalistas. Em sua maioria, os sofistas buscavam não somente a garantia de uma cidadania grega, mais atuante e crítica, que fosse tida pelas classes dominantes de então como boas, mas, sobretudo, a consolidação de um novo grupo de cidadãos, que entendesse a relatividade deste conceito do bom e do verdadeiro e do quão mutável seriam tais proposições. Portanto, o bom de fato para os sofistas e suas doutrinas seria aquilo que antes de ser tido como bom seja de fato útil em seu conjunto. Por fim, “tanto Sócrates como Protágoras acreditam na educação como chave para todos os problemas sociais e políticos” (KERFERD, 1999, p. 235) e somente através desta educação, com uma intencionalidade transformacional e teleológica, não conservadora de tradições estáticas e estagnantes, poder-se-ia trazer um bem, de fato, útil. Por isto, o movimento sofista concentrou-se fortemente no quesito educação, como o foco de suas atuações prol modificações no ambiente político, cultural, comportamental e intelectual de toda a Grécia na “idade de ouro”, como é constatado e tão comentado por historiadores e filósofos.
As confirmações deste amplo alcance popular são perceptíveis, pois “é certo que em nenhum outro lado tiveram todos, mesmo os mais simples cidadãos, tantas possibilidades de adquirir os fundamentos de uma cultura elementar, como em Atenas (...)” (JAEGER, 1994, p. 339). Por isto Sócrates e Protágoras concordarão no caráter distintivo da educação como indutora de uma benevolência generalizada intra-social, que é de interesse comum. Tudo isso nos faz pensar sobre a ideia de utilidade desta educação, devidamente fomentada, e que as más práticas não são, de fato, ações conscientes e desejadas, mas, sim, ações involuntárias e oriundas do desconhecimento e da ignorância humana.



[1] Chamaremos aqui de “filósofos preferenciais”, todos os filósofos que são tidos como unanimidade – os da tradição socrático-platônica – e de certa forma, blindados contra críticas de pretensos simpáticos à uma visão contrária e, se criticados, há um limite de críticas aceitáveis a serem feitas. Tais considerações estão baseadas nas observações dos cuidados tomados, que são, diga-se de passagem, muitos, em relação ao que se dirá em desfavor desses filósofos dentro das discussões filosóficas atuais.
[2] Segundo Kerferd, é arte retórica de sempre buscar a vitória nos debates, independentemente do meio, método ou recurso utilizado para este fim.
[3] Como nos apresenta um dos diálogos platônicos: “(…) ao Amor nenhum homem até o dia de hoje teve a coragem de celebrá-lo condignamente, a tal ponto é negligenciado um grande deus!” (PLATÃO. Diálogos. “O banquete”. 5ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p. 18 (177c)). O foco das discussões filosóficas está gradualmente mudando, das coisas naturais e metafísicas para as coisas relacionadas indireta ou diretamente com o homem per se.
[4] Para maiores detalhes sobre a questão da temporalidade e suas implicações dentro das discussões históricas, recomendo a leitura de BARROS, José D’Assunção. O projeto de pesquisa em história: da escolha do tema ao quadro teórico. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. Ver também GADDIS, John Lewis. Paisagens da história: como os historiadores mapeiam o passado. Rio de Janeiro: Campus, 2003.
[5] O termo dissoi logoi se refere à pluralidade interpretativa, onde Protágoras propõe a dualidade dos argumentos opostos, contudo, passíveis de defesa, tornando mais forte o argumento mais fraco e vice-versa, mostrando ser possível defender um discurso a partir de uma retórica organizada e previamente racionalizada. Grosso modo, dissoi logoi também pode ser traduzido como "duas razões, discursos etc.".
[6] Referimo-nos aqui ao processo de apreensão do saber e exposição do mesmo com base no dissoi logoi.
[7] O movimento sofista aqui tratado não se apresenta como um movimento previamente organizado, fundado numa doutrina. Apresenta-se, pois, como, um movimento reativo às demandas sociais. Contudo, encontra-se, notoriamente, um ponto de convergência nos objetivos mais comuns de cada personalidade aqui abordada.
[8] JAEGER, Werner Wilhelm. Paideia: a formação do homem grego. – 3ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1994. pp. 338. Até mesmo porque, segundo Jaeger “a política se enlaçava vigorosamente já desde o início na ideia de arete e se baseava na ordem e no bem-estar da comunidade estatal.”
[9] Para maiores explicações e detalhes sobre as discussões que tomaram lugar nestas exposições das características atribuídas aos sofistas, veja o Diálogo de Platão, Sofista, 1972, p. 144-156 (222b e 231c).
[10]GUTHRIE, W. K. C. Os sofistas. São Paulo: Paulus, 1995. p. 37.
[11] Para maiores detalhes veja,KERFERD, G. B. O movimento sofista. 1999.p. 17.
[12]Mais informações sobre estas assertivas da História numa proposição projetável a uma grande gama das disciplinas sociais e humanas,ver: CARDOSO, Ciro. Uma Introdução à História. 1986, p. 07-43.
[13] Segundo Kerferd, tipo de exame verbal que educa, livrando da alma dos indivíduos sob tal aprendizado, a inútil ideia de sabedoria. KERFERD, G. B. o movimento sofista. São Paulo: Edições Loyola, 1999. pp. 14.
[14] Grifo mantido.

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BIBLIOGRAFIA
BARROS, José D’Assunção. O projeto de pesquisa em história: da escolha do tema ao quadro teórico(3ª ed.). Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
CARDOSO, Ciro. Uma Introdução à História. Ed. Brasiliense, 1986, 6ª Edição.
CHILDE, V. G.A evolução cultural do homem. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Nascimento da prisão.Tradução de Ligia M. Pondé Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1989.
GADDIS, John Lewis. Paisagens da história: como os historiadores mapeiam o passado. Tradução de (...).Rio de Janeiro: Campus, 2003.
GAY, Peter, The Enlightenment: an interpretation. Londres: Editora Weidenfeld& Nicholson, 1967.
GUTHRIE, W. K. C. Os sofistas. Tradução de João Rezende da Costa. São Paulo: Paulus, 1995.
JAEGER, Werner Wilhelm. Paideia: a formação do homem grego.Tradução de Arthur M. Parreira– 3ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1994.
KERFERD, G. B. O movimento sofista.Tradução de Margarida Oliva. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
PLATÃO. “Fedro”. In: Diálogos. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2007.
_____. “O banquete”. In: Coleção Os Pensadores. Tradução de José Cavalcante de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
_____. “Protágoras”. In: Diálogos. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2002.
_____. “Sofista”. In: Coleção Os Pensadores. Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo: Abril Cultural, 1983.