quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Análise do filme Germinal à luz do Manifesto Comunista.

Aproximações e realizações entre o cinema e a teoria marxiana.

Wilson Oliveira Badaró

Introdução


            O presente trabalho visa discutir os aspectos da formação da classe trabalhadora no século XIX, assim como os respectivos movimentos operários deste contexto histórico  que deram início às transformações significativas nas relações de trabalho. Para tal empresa, propôs-se o uso de discussões contidas no filme "Germinal", filme do ano de 1993 dirigido por Claude Berri, que apresenta uma situação específica dos mineiros franceses do século XIX e demonstra, com fidelidade e efeito, as condições, demandas e anseios dos trabalhadores daquele momento histórico.
            Partindo destes objetivos e tema motivador, tentaremos compreender os fenômenos aí apontados por Claude Berri, que estão relacionados a uma estratificação visível da sociedade polarizando trabalhadores que apenas dispunham de seus braços para sustentar-se e, do outro lado, aqueles que dispunham de instrumentos, aparelhos, máquinas, enfim, todos os recursos necessários para potencializar as capacidades produtivas dos braços dos primeiros (meios de produção). Veremos como Marx apresenta tais fenômenos no Manifesto Comunista e como esta teoria se percebe, se confirma, se refuta, ou se modifica à luz das descrições do Manifesto Comunista na produção cinematográfica.
            De antemão sabemos que nas páginas do Manifesto Comunista temos algumas constatações que embasam e iluminam o capítulo histórico capturado e reproduzido na produção de arte do cinema supramencionada, – que é inspirada e, em certa medida, uma reprodução de um livro homônimo de época de autoria de Émile Édouard Charles Antoine Zola, ao qual é atribuída a fundação da literatura naturalista – demonstrando como as primeiras organizações políticas trabalhistas se deram e como se configuraram. Assim sendo, tentaremos apontar quais as aproximações entre as discussões teóricas de Karl Marx e Friedrich Engels no Manifesto Comunista e as apresentações audiovisuais de Claude Berri apropriadadas dos discursos e denúncias do grande escritor naturalista Émile Zola. Obviamente outras referências estarão incluídas na discussão, contudo, pretende-se que a maior parte das intervenções sejam feitas com base no Manifesto Comunista.

Análise


            O filme começa apresentando um personagem chegado de outra localidade, Étienne Lantier, em busca de trabalho nas minas e o cenário com o qual se depara é bastante sintomático (BERRI, 1993): pessoas fadigadas pela longa jornada laboral, enfermas em virtude das exposições contínuas ao carvão, choques térmicos e gases.
Este cenário condiz com o contexto de estruturas recém saído dos antigos moldes manufatureiros e artesãos comuns no período pré-capitalista. O cenário focado na demonstração de uma imponente maquinaria é importante para enfatizar que "o sistema feudal ou corporativo, sob o qual a produção industrial era monopolizada por corporações fechadas, já não bastava mais para a demanda em crescimento dos novos mercados" (MARX et ENGELS, 1998, p. 11) explorando as novas formas de organização do trabalho.
            Este personagem chegado à mina desenvolverá um papel importante nas articulações políticas dos trabalhadores dentro da trama exercendo este papel pensado dentro da teoria revolucionária de Marx antevendo os explorados – o proletariado – se organizando e se revoltando contra seus exploradores – os donos dos meios de produção como os burgueses, por exemplo –, polarizando e materializando os dois grupos antagônicos – explorados e exploradores – descritos por Marx e Engels dentro do conceito de "luta de classes" (MARX et ENGELS, 1998, pp. 09-10).
Dizemos papel central e não determinante pelo fato de sua ação ser, talvez, mais de organização do que de execução de fato. Tal assertiva de minha parte toma maior corpo na fala do personagem de Jean Carmet – Vincent Maheu dit Bonnemort –, partindo de uma notória análise de discurso, na qual revela a situação de Étienne Lantier que "na cristaleira Garbois ameaçam greves" (BERRI, 1993) pois, "falam em baixar os salários" (BERRI, 1993) mostrando que mesmo que, se no ambiente da mineradora em questão não se fizesse presente a intenção de greve, ao seu redor tais discussões e intenções já fervilhavam. Assim sendo, o papel de Étienne Lantier é de organizador e motivador, mas não de revolucionário central e determinante.
            O filme, como um todo, mostrará quais as razões e motivações que levaram a classe trabalhadora a optar por se articular politicamente e agir, no momento em que a política pura, dentro dos formatos patronais, e formal não mais é possível para angariar suas melhoras e conseguir mudanças em seu estado econômico e laboral. Os processos que serão vistos nas próximas páginas condizem com um fenômeno histórico visto até os dias atuais, em se tratando de movimento trabalhista, obviamente, hoje muito mais organizado e politizado, assim como, estruturado do ponto de vista burocrático, para a transformação da classe trabalhadora em uma classe reconhecida e respeitada.

As condições adversas do proletariado no trabalho das minas


            A questão da luta de classes aparece bem nítida logo no início da trama. Fica claro na obra a apresentação de suas contradições e antagonismos quando, por exemplo, Vincent expõe a sua situação econômica a Étienne dizendo que "não comemos carne todos os dias" (BERRI, 1993) ou, apresenta a situação constante da periculosidade do trabalho de mineração revelando a Étienne que "tiraram me daí três vezes feito pó uma vez com todos os cabelos chamuscados, outra com a garganta cheia de terra e a terceira com o ventre inchado cheio de água como uma rã" (BERRI, 1993). Sendo que a posteriori, o próprio filme apresentará os burgueses em condição completamente distinta e, de longe muito melhor como veremos nas próximas páginas. A situação é agravada no momento em que temos a declaração do personagem Vincent ao afirmar que desceu pela primeira vez nas minas quando tinha apenas oito anos de idade e que naquele momento tinha cinquenta e oito (BERRI, 1993) mostrando que "a sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos das classes. Estabeleceu novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta no lugar das antigas" (MARX et ENGELS, 1998, pp. 09-10).
            Trechos interessantes como a fala de Toussaint Maheu à sua filha, Catherine, revelam que as observações de grandes teóricos dos fenômenos relacionados a formação da consciência de classe pelos trabalhadores eram pertinentes. Maheu dirá a sua filha que se ela "não tivesse dançado até tão tarde nos teria despertado antes" (BERRI, 1993), expondo o que Thompson discutiu em sua obra "Costumes em comum" e, nos leva a pensar a partir da percepção de tempo que tem Maheu. Maheu desconsidera o lazer da filha – mesmo sendo um dia de domingo – em detrimento de mais tempo de trabalho nos fazendo crer que tinha razão Thompson ao observar "como o lazer se tornou um problema? O puritanismo, com seu casamento de conveniência com o capitalismo industrial, foi o agente que converteu as pessoas a novas avaliações do tempo (…) e que saturou a mente das pessoas com a equação 'tempo é dinheiro'" (THOMPSON, 1998, p. 302).
            Guardadas as devidas proporções de tempo e espaço[1], parece-nos lícito afirmar que a religiosidade, em certa medida, dividia as opiniões e interpretações sobre o uso do tempo também na França, embora o filme, inspirado em uma obra que tinha como maior foco de atenção a natureza e as leis "naturais" que regiam o homem e a sociedade, como o próprio  Èmile Durkheim defendia em seu mecanicismo, creio eu, acabou por não captar…
            Também nos chamou a atenção o como os salários eram calculados partindo de uma rigorosa atenção, por parte dos burgueses, às demandas mais imediatas dos seus pretensos trabalhadores para que pudessem garantir exatamente, e tão somente, aquilo do qual eles necessitavam para sobreviver e poder assim reproduzir a sua força de trabalho e decrepitamente a sua prole, garantindo assim, mão de obra para as gerações futuras de seus impérios industriais. Obviamente, este fenômeno foi exaustivamente trabalhado por Edward Palmer Thompson em seu livro "Costumes em comum" no capítulo seis[2] decifrando alguns processos onde as resistências à nova concepção de tempo – do tempo capitalista – ficam explícitas. Agora, segundo este autor, o tempo deixou de pertencer ao ritmo e propensão dos trabalhadores e passou às mãos dos capitalistas e dos seus gestores[3] – pessoas que controlavam as ações dos executores das tarefas – a (no filme, também na pessoa de Dansaert) que se empenharam em "disciplinar" o uso do tempo e pagando também através dele.
            Dentro desta discussão, temos um interessante contraponto, a contradição do tempo percebido em diferentes lugares sociais na relação trabalhador/empregador: "essa medição incorpora uma relação simples. Aqueles que são contratados experienciam uma distinção entre o tempo do empregador e o seu 'próprio' tempo." (THOMPSON, 1998, p. 272) Fizemos estas discussões para enfatizar o quão subjugados os trabalhadores daquele contexto histórico estavam aos desmandos da dita "organização na divisão social do trabalho" feitos pelos detentores dos meios de produção e seus gestores. Atentamos ainda que este fenômeno ficou marcado na passagem supra mencionada da fala de Maheu para Catherine.
            Flagrantemente, a família é grande, são dez pessoas, e as rendas não bastam, todos, em idade produtiva estão envolvidos em atividades rentáveis (mineração) para, até onde fosse possível, contribuir para a subsistência da família.
            Para além destes detalhes hermenêuticos e velados ou explícitos de máxima exploração da força de trabalho da família de Maheu, mais à frente no filme, esta obra nos apresenta a grande exploração de terceiros: crianças embarcadas em charriots para serem levadas para o interior das minas, pessoas em geral em completo estado de degradação física e estética, mulheres envolvidas na produção (extração do minério), condições precárias do espaço de trabalho (minas perigosas, escoramentos frouxos, equipamentos pouco eficientes na proteção, bolsas de gás) etc. Este cenário de plena exploração apresenta o quadro de como a burguesia, através da detenção dos meios de produção, se diferenciou histórica e economicamente dos demais grupos ou classes sociais. Marx e Engels irão afirmar que devido ao foco e incentivos burgueses no desenvolvimento de novas tecnologias que suportassem e auxiliassem a intensificação da produção de bens de consumo e, sobretudo dos bens de capital, mercantilizaram assim tudo o que lhes convinha. Assim,
este crescimento afetou novamente a extensão da indústria; e, na mesma medida em que a indústria, o comércio, a navegação e as estradas de ferro se estendiam, a burguesia se desenvolvia, aumentava o seu capital e deixava para trás todas as classes provenientes da Idade Média (MARX et ENGELS, 1998, p. 12).
            Poderíamos descrever muitos outros detalhes relacionados às condições dificultadas, para não dizer subumanas, de trabalho do proletariado, contudo, o nosso objetivo aqui é apresentar as razões pelas quais a classe trabalhadora revelou-se, historicamente, a classe que antagonizou ao longo dos tempos a classe burguesa. Notadamente, estes elementos de exploração e desumanização desta classe, como visto nestes exemplos, constituíram-se em fortes razões para lutar não somente por melhorias nas condições de vida, mas, com efeito, pela horizontalização das relações de trabalho e sociais.

As condições de vida da burguesia detentora dos modos de produção


            Em contrapartida, temos uma apresentação bastante incisiva e diametralmente oposta das condições de vida dos burgueses se comparada à situação econômica, social, estética e política do proletariado, refletindo bem o que, ainda hoje, e talvez, sobretudo hoje, pode ser percebido nesta paradoxal revelação da produção cinematográfica.
            O filme traz à tona como a discrepância entre as duas classes, que à luz da comparação mais parecem dois mundos, é grande. Um fosso seria talvez a mais cabida expressão para distinguir as duas diferentes realidades.
            O cenário atribuído pela produção como habitat natural da burguesia parece saído das descrições históricas da sociedade de cortes de Norbert Elias[4]. A área onde jaz a residência é deveras grande e requer um meio de transporte que não as próprias pernas para se acessar a casa se não se quer chegar aí exausto. O interior desta é extremamente luxuoso e traz elementos flagrantemente supérfluos e requintados: cortinas estampadas para todas aberturas da casa, decorações como pinturas, esculturas, flores e porcelanas abundam nos espaços. Mobília confortável e bem constituída, lustres, faianças, charretes, animais de tração e estimação, relógios (segundo Thompson, um artigo extremamente caro àquela altura), cristais, talheres, roupas e vestes muito apropriadas e belas, enfim, toda uma luxuosidade ímpar que bem descreve a realidade que sabemos existir até os dias atuais.
            Como se esta imponência material não fosse o suficiente, a fatura em termos alimentares vem corroborar o que a primeira vista, grosso modo, se faz notório. A diferença brutal e perversa do modus vivendi e da acessibilidade dos burgueses a uma vida mais digna que a vida daqueles que lhes concedem a condição desta dignidade – o operariado.
            As discussões voltadas prioritariamente para o lucro – caso do almoço entre as famílias burguesas no filme – revelam a importância que davam as questões sociais e de seus subordinados. Apenas tratavam de negócios, ações, e para não ser de todo leviano, temos uma cena, entrementes as discussões sobre negócio, onde ocorre que o seu rebento – aqui representada pela filha Cécile – cumprindo sua função "social". Tal função consistiu em deitar migalhas aos desvalidos e famintos enquanto os adultos se incumbiam de criticar a demasiada fertilidade da indigesta visitante inesperada – Maheude.
            A única preocupação real de um dos acionistas da mina foi com o tempo de trabalho de Maheude nela, negando-se a socorrer a representante da família com qualquer que fosse a importância, apesar de tanto ostentarem e disporem em suas posses. Para embasarem sua decisão de não ajudar financeiramente alegavam que já faziam muito, e provavelmente já era o bastante pois, "a companhia lhes dá casa e calefação" (BERRI, 1993).

As condições do pequeno comerciante pressionado bilateralmente


            O pequeno comerciante neste cenário se via, entre o déficit financeiro dos trabalhadores arrochados em seus ganhos e do crescente aumento de produtos e bens de consumo que, como por consequencia, aumentava exponencialmente a concorrência, que em geral, tendia a se tornar um problema devido ao início de uma produção crescente que, em breve tornar-se-ia uma produção de larga escala de todos os gêneros de bens de consumo propiciada pelas novas tecnologias em desenvolvimento. Neste caso específico – da obra cinematográfica, – o pequeno comerciante foi personificado em Maigrat, (embora contemos também com o senhor Rasseneur, mais flexível por haver sido ele, também, um mineiro) que se apresenta pouco propenso a atender as necessidades dos trabalhadores em apuros devido, provavelmente, aos altos índices de recorrência dessas necessidades "emergenciais". Contudo, a sua pouca propensão não se traduz em nenhuma propensão, haja vista que ele sucumbiu ante as solicitações de Mahuede fornecendo-lhe "(…) pão até o sábado, manteiga, café, chicória até me deixou uns francos, por isso pude comprar carne" (BERRI, 1993), mostrando que apesar de todas as dificuldades dos trabalhadores, as classes mais próximas – os pequenos comerciantes – ainda apoiavam os trabalhadores, na medida do possível, em suas dificuldades, mesmo que alguns deles com algum interesse particular e objetivo (Caso Maigrat).
            Dizemos "bilateralmente pressionado" porque percebemos que, o pequeno comerciante além de forçado a atender, em certa medida estas necessidades, convivia com a possibilidade do surgimento de novos comerciantes que lhe tomariam a freguesia descontente com sua pouca flexibilidade, (algo que fora relatado e recomendado por ele mesmo). No caso do comerciante Rasseneur, ele reconhece em diálogo com Maheu que, caso os valores dos vagonetes fossem, efetivamente, reduzidos "haverá confusão" (BERRI, 1993), demonstrando discernimento e propensão à causa trabalhadora. Ambos, em certa medida, apoiaram, de uma forma ou de outra, a causa trabalhista.  Há ainda a necessidade de se esclarecer com maior precisão que os papéis de um e outro, tal como retratados no filme, são bastante distintos. De um lado, temos um comerciante que se utiliza de sua condição de fornecedor de víveres mais próximo e provável que tenta em dados momentos obter vantagens sexuais das mulheres. De outro, temos um militante político compreensivo e ponderado que tenta contribuir com transformações em seu contexto histórico.
            Um detalhe bastante curioso que é apresentado no filme é como o senhor Maigrat se propunha aberto a este tipo de negociação caso suas necessidades "emergenciais" fossem também atendidas, fato este que, por fim, render-lhe-á um final bastante incomum e inesperado, pois, o descontrole em parte dos integrantes do ato de protesto, que é normal em manifestações, rebeliões, protestos e revoltas acabaram tomando rumos adversos e coube-lhe, como em geral cabe sempre aos pequenos, pagar pela ação dos grandes.

Problematização


            Diante destes dados e informações contidos no filme, percebemos que os elementos necessários para uma insatisfação seguida de protestos contra todas as formas de abuso e exploração do trabalhador já estavam dadas. É aqui, neste ponto, que entendemos o que Marx e Engels disseram ao afirmar que a burguesia "não só forjou as armas que trazem a morte para si própria, como também criou os homens que irão empunhar estas armas" (1998, p. 19). Confirmando isto, Chaval, em diálogo com outro trabalhador, expõe que "hoje nossos filhos já não têm nada para comer. – É assim, aproveitam-se de nós. – Só nos resta aguentar. – E ainda dois centavos a menos por vagoneta!" (BERRI, 1993) demonstrando como os ânimos já estavam voltados para uma reivindicação mais presente e notória se configurando nas armas da qual falava o manifesto.
            Além de todas as dificuldades para os trabalhadores e estímulos à revolta trabalhista que vimos acima, a classe burguesa, pressionada pelas leis de mercado, ao começarem a ver diminuir seus lucros, para mantê-los em níveis mais aprazíveis para eles mesmos, resolvem que o ponto a ser reformulado deve ser o bolso do trabalhador. Com esta medida, as dificuldades de conseguir crédito com o pequeno comerciante, de manter a família minimamente alimentada, de obter tempo livre para o lazer, dos perigos constantes no trabalho, das crianças que perdiam sua infância no trabalho braçal, se apresentam, de forma cumulativa como o último impulso para uma organização trabalhista mais incisiva.
            Um exemplo mais tocante de como os fatos se tornaram insustentáveis foi o momento que, enquanto Catherine se esforçava para conseguir fazer com que os trabalhadores da casa levassem comida para o trabalho, inclusive ela própria, enquanto trabalhadora, e deixar comida para sua mãe e irmãos mais novos, além de dividir sua pouca de comida com Étienne, ao passo que Cécile, a filha burguesa dos proprietários da mina na qual a Catherine trabalhava, acordava ao cheiro de brioches… Ou ainda, enquanto os trabalhadores se organizavam para a greve em virtude da fome que passavam os burgueses se banqueteavam com caranguejos e faisão… Ou seja, todo um fosso de condições que impelia os fatos para o desfecho que presenciamos no filme.
            Em se tratando de problematizar a partir de um recorte temático e não se restringindo apenas ao recorte espaço-temporal, faremos algumas analogias e aproximações entre as análises do trabalho mineiro percebidas e anotadas por Engels sobre a mineração inglesa e as exposições no filme Germinal. Primeiro podemos destacar o aspecto da expectativa de vida apresentado no filme onde o senhor Vincent, que havia iniciado os trabalhos aos oito anos de idade já vivia seus cinquenta e oito anos, enquanto que na Inglaterra, os homens que iniciam sua vida laboral
precocemente nas minas não atingem o desenvolvimento físico das mulheres que trabalham na superfície; muitos morrem ainda jovens, vítimas de tuberculose galopante, e outros na meia-idade, em razão da tuberculose lenta; é comum o envelhecimento precoce, que torna os homens ineptos para o trabalho entre 35 e 45 anos; e muitíssimos operários, passando quase sem transição do ar quente das galerias, depois de transpirar abundantemente na penosa subida das escadas, ao ar frio da superfície, contraem inflamações agudas nas vias respiratórias, de resto já vulneráveis, que levam habitualmente a consequencias fatais (ENGELS, 2008, p. 276).
            Piorando o quadro, Engels denuncia a situação a partir de constatações médicas que nos indicam que "a maioria morre entre 40 e 50 anos" (ENGELS, 2008, p. 277).
            Segundo, as estruturas são bastante parecidas no tocante ao espaço de trabalho onde numa realidade e noutra, as minas são muito inseguras e os acidentes são constantes. A presença de mulheres e crianças é observada em ambas as situações de trabalho nestes diferentes espaços.
            Terceiro, tanto no relato de Engels como no filme Germinal, tivemos um personagem aglutinador que organizou os manifestos e resistências da classe trabalhadora. Nas anotações de Engels fora um "cartista que já se distinguira em processos anteriores, o advogado W. P. Roberts, de Bristol" (ENGELS, 2008, p. 286), já para a produção cinematográfica, fora o ex-maquinista do sul da França Étienne Lantier, o personagem articulador das ações. Em ambos os casos recorreram à greve como forma de mobilizar seus patrões no sentido de atender as reivindicações no sentido de reverter o padrão de imutabilidade e imobilidade social em que estavam emergidos naquele contexto.
Também, em ambas as (re)construções fica explícita a descrença religiosa da intervenção divina, e que a intervenção deve ser de fato feita pelas mãos dos próprios trabalhadores. Separação esta feita com uma clara demarcação também na fala de Chaval que afirma que "o operário reflete devido ao ensino, dantes nas minas, os avós faziam uma cruz" (BERRI, 1993). Ou ainda quando Maheude tenta infrutiferamente ser acudida por um padre transeunte no processo de convencimento de Maigrat. Apenas algumas observações que não poderiam deixar de constar para uma leitura mais ampla do momento histórico.           

O(s) agente(s) deflagrador(es) da revolta


Todos os personagens da trama atribuem a possibilidade de insurgência à redução dos valores pagos por vagonetas retiradas – muito embora a redução do valor da vagoneta estivesse diretamente relacionada aos escoramentos –, minimizando outros aspectos e fatores de exploração como "os sistemas de moradias operárias […] utilizado de modo a explorar mais o trabalhador" (ENGELS, 2008, p. 284), como os sistemas de multas injustas e todos os outros elementos aqui apresentados.
Obviamente, a redução do valor por vagoneta representou uma afronta insuportável que, caso não fosse afrontada, provavelmente o próximo passo dos proprietários das minas seria colocar rédeas e montar nos mineiros para que com eles sob seus fundilhos pudessem arregimentar a extração do valioso mineral. Contudo, não deve ser desprezado o peso de todos os outros elementos já aqui apontados que servem como agravantes e que, possivelmente, caso estivessem ausentes, a greve não aconteceria pelo fato isolado da redução do valor dos vagonetes.
Esta afirmação está embasada não somente na observação imediata da situação do operariado, mas, também, no fator preponderante considerando que a "revolta do operariado reflete, assim, a demonstração efetiva do seu sentimento contra a situação desumana do trabalho fabril e de suas péssimas condições de vida aguçadas a partir do processo de industrialização capitalista" (BIZERRA E SOUZA, ????, p. 115). Tal revolta mostra-se possível apenas devido a todo o acúmulo de problemas envolvidos que agravam as decisões patronais de reduzirem seus ganhos.
Ao perceberem os proprietários uma organização mais delimitada por parte dos trabalhadores, como se vê no filme, os burgueses temem, como também prevê o Manifesto, o fim da propriedade privada (MARX et ENGELS, 1998, p. 27) e, sobretudo, a união consciente dos trabalhadores com fins combativos com vistas a uma utópica (hoje sabemos) escatologia da exploração do homem pelo homem (MARX et ENGELS, 1998, p. 29 – p. 41). Tal efeito vê-se com nitidez na fala do representante burguês no filme o "senhor Diretor" que acusa "essa internacional, esse exército de bandidos que pensam em destruir a sociedade" quando se refere ao socialismo e prossegue recomendando a Étienne que "se [ele] queres salvar as minas da podridão socialista" que ele se enquadrasse nos moldes dos outros trabalhadores (submissos) como tantos outros. O discurso redundante que lhes permite se esconderem por trás da ideia de competição e da concorrência de mercado precedem a dissimulação explícita de não desejarem partilhar seus lucros, ou ainda à intencional criação das sociedades anônimas que oculta a verdadeira face do responsável pela miséria de tantos trabalhadores, relegando os problemas às leis naturais da economia e a esta atribuindo a razão dos problemas de todos (BERRI, 1993).
No filme, quando Étienne clama a atenção de todos para uma fala voltada para a união dos esforços onde a greve funciona como o mecanismo político mais eficaz (BERRI, 1993) percebemos que o que ocorre aí é a materialização da percepção histórico-filosófica de Marx acerca da consciência de classe tal qual apresentada nas
condições precárias de trabalho e de reprodução social em que se encontrava subordinado o proletariado, contribuíram para que se despertasse a consciência de classe, para o sentido de pertencimento/de identidade de classe contra a exploração/ a dominação burguesa (BIZERRA E SOUZA, ????, p. 116).
E como bem vistas na produção fílmica de Berri nos espaços de socialização descritos e trabalhados na obra, tema este que será abordado em maior profundidade no capítulo seguinte.

Os espaços de socialização e organização dos trabalhadores


                Os bares, assim como os eventos populares, ao menos nesta obra, desenvolveram um papel fundamental na organização e discussão das medidas a serem tomadas para uma reivindicação mais organizada, objetiva e prática por parte dos trabalhadores em sua luta por melhores condições de vida e de trabalho.
No bar apareceram algumas ideias dos tipos de socialismo descritos no Manifesto Comunista por Marx e Engels. O socialismo do pequeno negociante proprietário do estabelecimento senhor Rasseneur, chamado pelos autores do manifesto de pequeno-burguês que propõe atenção às discussões da Associação Internacional dos Trabalhadores - AIT; o radical, anarquista na primeira cena do bar, ou na fala de Chaval após a festividade, no qual não consegui enquadrar em nenhum dos tipos propostos pelo manifesto (parece que não incluíram em suas discussões o anarquismo, ao menos no manifesto); e o mais moderado, porém, não menos revolucionário na fala de Étienne que se opunha ao radicalismo, em sua percepção, destrutivo e, como acabamos vendo no filme, um tanto sanguinário do anarquista.
Já no evento popular tivemos conversas da parte de Étienne sobre formas de organização econômica que possibilitassem uma paralisação segura por parte destes trabalhadores, embora seu ouvinte cresse que a submissão fosse talvez, o melhor caminho. Neste momento, Etienne apresenta com maior ênfase a ideia de um caixa que servisse de fundo tipo previdenciário que sustentasse e auxiliasse os trabalhadores em sua opção por uma paralisação mais detida e sistemática.
Desta forma, notamos como outros espaços que não o próprio espaço de atuação laboral contribuíram com a causa no fomento de ideias e proposição de novos caminhos para os embates entre as duas classes antagônicas.

As variadas formas de organização burguesa


            O personagem de Vincent aponta uma pista mais alusiva a uma discussão taxonômica perceptível onde ele revela que a mina é "dirigida" pelo senhor Hennebeau, ele não é o proprietário dela, indicando a terceira classe – a burocrática, gestora, ou tecnocrática – comentada pelo professor Vinícius Rezende, evidenciando uma espécie de sociedade anônima – caso da mina onde trabalham Étienne e Maheu.
            Há, todavia, uma fala de Maheu onde ele propõe que a outra mina tinha um dono, sendo ele o senhor Daneulin, e que nesta mina, onde o proprietário é apenas um só, ele está tendo problemas econômicos.
            Esta complexificação das diferentes formas de organização da burguesia visou, indiretamente – talvez inconscientemente –, mas, como visto no filme, bastante eficazmente, dificultar as ações dos trabalhadores, uma vez que não se sabe, neste tipo de organização burguesa, quem é o dono, pois funciona como uma espécie de sociedade anônima. O filme também nos aponta o tipo mais simples de empreendimento burguês onde se sabe exatamente quem é o proprietário. Neste tipo, pode-se direcionar com precisão os protestos ao proprietário da indústria.

Conclusão


            Como pudemos ver ao longo dessa discussão e ao longo do filme, as medidas mais variadas de resistência e de organização foram efetuadas. Em alguns momentos as greves não se generalizaram de modo a obter força e efeito suficientes para fazer o patronato revisar suas condutas. Apesar das divergências entre a própria classe trabalhadora – dos dissidentes da mina Jean-Bart – as ferramentas foram criadas e desenvolvidas no sentido de proteger a classe contra a excessiva exploração que se deu naquele contexto.
            Movimentos enxadristas por parte dos burgueses sempre foram sua especialidade. Como no caso isolado de um possível líder revolucionário – caso Chaval – sempre trataram de tentar corrompê-los antes que se tornassem significativos e é também notório que tais medidas, ao serem percebidas por parte dos grupos trabalhistas organizados conduziram a movimentos muitas vezes radicais. Tais radicalismos sempre afetaram e atingiram, em primeira instância, os menores e mais fracos na escala de uma sociedade capitalista e "aburguesada" como capatazes, gerentes, administradores, comerciantes etc.
Isto se dá porque, os reflexos dos feitos da classe opressora, os burgueses proprietários dos meios de produção, sempre foram visualizados primeiro através destes arautos e porta-vozes da miséria da classe trabalhadora, incorporando do ponto de vista simbólico, aos olhos dos explorados, a razão de sua miséria generalizada. (BERRI, 1993)
            Considerando que o estágio de "alienação que induz ao trabalho compulsório em prol do enriquecimento do capitalista, induz-nos a perceber que só se chega, de fato, ao estágio de alienação quando o trabalho deixa de ser uma necessidade e se torna um meio de sobreviver"[5] (BADARÓ, 2010), pois, a necessidade de sobrevivência per se gera ações completamente imprevisíveis em ambos os lados gerando excessos que impressionaram até ao mais positivo dos pensadores do racionalismo e embebidos nas máximas do aufklarüng[6] kantiano. Excessos estes que vimos bem expressos na obra cinematográfica de Berri no caso de Vincent descarregando todo o seu amargor pelos sofrimentos passados sobre Cécile, filha de burgueses na qual ele, provavelmente personificou toda a estrutura simbólica tangível da opressão. Fazendo este tipo de reatividade uma característica sui generis das classes oprimidas em movimento de protesto contra todas as formas de exploração experimentadas. Não se quer com isto justificar atos atrozes, mas, apenas apontá-los como características historicamente verificáveis daqueles que se encontram não somente em condição de subalternidade, porém, e sobretudo, em condições extremas de expropriação de seus direitos mais básicos e humanos.
            Como conclusão, percebemos ainda que, em virtude de uma articulação política que apenas visa a demagogia como vertente, o estado negou a leitura de que Foucault faz da função do estado como aparelho regulador da sociedade. Aqui apenas aparece o estado com a intenção de amaciar os corpos e "docilizar" os homens, pois, como percebemos no filme, os únicos "docilizados" e amaciados pelo teorizado poder instituído do "contrato social"[7] de Rousseau foram os trabalhadores famintos e não os sedentos e mesquinhos burgueses algozes que, por sua vez, hostilizaram e oprimiram as classes trabalhadoras com as piores condições possíveis para a execução de suas tarefas. Estes sim mereciam ter seus corpos "docilizados" pelo estado. Ou seja, uma "docilização" bastante tendenciosa e unilateral.
Por fim, a gênese da formação da classe trabalhadora não resolveu as diferenças e nem aboliu os problemas inerentes às relações de trabalho exploratórias e predatórias da classe burguesa, ao menos no contexto que vimos no filme e nos textos propostos pelo professor, contudo, demonstrou que suas conquistas foram concretas e são sentidas até os dias atuais. Além disto os seus exemplos, com muita certeza, mostrou-nos o caminho histórico que deve ser seguido, aprimorado e executado pois, os burgueses, de acordo com os últimos fatos dos protestos na sociedade brasileira, ainda tremem e "não dormem com medo dos que não comem". (Josué de Castro)



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Bibliografia


BADARÓ, Wilson Oliveira. Modelo de Fichamento de Sociologia 2. Cachoeira, 2010. Disponível em: acesso em: 15 de outubro de 2013.
BIZERRA, Fernando de Araújo e SOUZA, Reivan Marinho de. A organização política da classe operária do século XIX. Revista Online do Museu de Lanifícios da Universidade da Beira Interior. O artigo pode ser encontrado no endereço que se segue. Disponível em: acesso em 13 de outubro de 2013.
ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008. Exemplo eletrônico disponível para consultas no endereço eletrônico que se segue. Disponível em: acesso em: 13 de outubro de 2013.
KANT, Imanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Tradução: Leopoldo Holzbach. São Paulo, SP: Martin Claret, 2005.
MARX,  Karl e ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
QUINTANEIRO, Tânia. Um toque de clássicos: Durkheim, Marx e Weber. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1995.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Filme

GERMINAL. Direção: Claude Berri. Renn Productions, 1993. 1 Arquivo wmv de 151 minutos e 48 segundos.



[1] Sabemos que o fenômeno que Thompson observa tem fontes bastante abrangentes e relacionadas com boa parte da história de povos de todo o mundo, contudo, não se pode negar a influência cultural que os huguenotes imprimiram nos comportamentos e mentalidades francesas desde o século XVI. Além de uma tradição protestantista, reconhecidamente revolucionária em relação às tradições vigentes e historicamente passadas e construídas a partir de representações coletivas, o contrariar das máximas católicas, trouxe, segundo análises weberianas, um novo comportamento laboral que defendia o trabalho e o tempo produtivo como dádivas de Deus.
[2] THOMPSON, Edward  P. Tempo, disciplina de trabalho e o capitalismo industrial. In: __________. Costumes em comum. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
[3] Embora este conceito não tenha sido usado por Thompson, tomo aqui emprestada a ideia explanada pelo professor doutor Vinícius Rezende da aplicabilidade e da possibilidade da existência de uma terceira classe para além das duas classes propostas inicialmente pelo marxismo.
[4] Para maiores informações veja: ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
[5] Reflexão disponível em blog acadêmico discutindo detalhes sobre os clássicos da sociologia. Tal reflexão é inspirada nas discussões de Tânia Quintaneiro na obra Um toque de clássicos disponível na bibliografia deste trabalho.
[6] Conceito Kantiano relacionado com a ideia de ilustração ou iluminação do homem a partir dos processos de racionalização ou de maior entrega do homem às questões da razão enquanto motivadores das ações humanas. Cf. KANT, Imanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Tradução: Leopoldo Holzbach. São Paulo, SP: Martin Claret, 2005.
[7] Ideia de que aceitamos que o estado seja o único usuário da força como forma de organizar a sociedade e mantenedor das leis vigentes em prol de uma maior harmonia entre os seus membros desta. Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

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