Aproximações e realizações entre o
cinema e a teoria marxiana.
Introdução
O
presente trabalho visa discutir os aspectos da formação da classe trabalhadora
no século XIX, assim como os respectivos movimentos operários deste contexto
histórico que deram início às transformações
significativas nas relações de trabalho. Para tal empresa, propôs-se o uso de
discussões contidas no filme "Germinal", filme do ano de 1993
dirigido por Claude Berri, que apresenta uma situação específica dos mineiros
franceses do século XIX e demonstra, com fidelidade e efeito, as condições,
demandas e anseios dos trabalhadores daquele momento histórico.
Partindo
destes objetivos e tema motivador, tentaremos compreender os fenômenos aí
apontados por Claude Berri, que estão relacionados a uma estratificação visível
da sociedade polarizando trabalhadores que apenas dispunham de seus braços para
sustentar-se e, do outro lado, aqueles que dispunham de instrumentos,
aparelhos, máquinas, enfim, todos os recursos necessários para potencializar as
capacidades produtivas dos braços dos primeiros (meios de produção). Veremos
como Marx apresenta tais fenômenos no Manifesto Comunista e como esta teoria se
percebe, se confirma, se refuta, ou se modifica à luz das descrições do Manifesto Comunista na produção
cinematográfica.
De
antemão sabemos que nas páginas do Manifesto Comunista temos algumas constatações
que embasam e iluminam o capítulo histórico capturado e reproduzido na produção
de arte do cinema supramencionada, – que é inspirada e, em certa medida, uma
reprodução de um livro homônimo de época de autoria de Émile Édouard Charles Antoine
Zola, ao qual é atribuída a fundação da literatura naturalista – demonstrando
como as primeiras organizações políticas trabalhistas se deram e como se
configuraram. Assim sendo, tentaremos apontar quais as aproximações entre as discussões
teóricas de Karl Marx e Friedrich Engels no Manifesto Comunista e as
apresentações audiovisuais de Claude Berri apropriadadas dos discursos e denúncias
do grande escritor naturalista Émile Zola. Obviamente outras referências
estarão incluídas na discussão, contudo, pretende-se que a maior parte das
intervenções sejam feitas com base no Manifesto Comunista.
Análise
O
filme começa apresentando um personagem chegado de outra localidade, Étienne
Lantier, em busca de trabalho nas minas e o cenário com o qual se depara é
bastante sintomático (BERRI, 1993): pessoas fadigadas pela longa jornada
laboral, enfermas em virtude das exposições contínuas ao carvão, choques
térmicos e gases.
Este cenário condiz com o contexto
de estruturas recém saído dos antigos moldes manufatureiros e artesãos comuns
no período pré-capitalista. O cenário focado na demonstração de uma imponente
maquinaria é importante para enfatizar que "o sistema feudal ou corporativo,
sob o qual a produção industrial era monopolizada por corporações fechadas, já
não bastava mais para a demanda em crescimento dos novos mercados" (MARX et
ENGELS, 1998, p. 11) explorando as novas formas de organização do trabalho.
Este
personagem chegado à mina desenvolverá um papel importante nas articulações
políticas dos trabalhadores dentro da trama exercendo este papel pensado dentro
da teoria revolucionária de Marx antevendo os explorados – o proletariado – se
organizando e se revoltando contra seus exploradores – os donos dos meios de
produção como os burgueses, por exemplo –, polarizando e materializando os dois
grupos antagônicos – explorados e exploradores – descritos por Marx e Engels
dentro do conceito de "luta de classes" (MARX et ENGELS, 1998, pp. 09-10).
Dizemos papel central e não
determinante pelo fato de sua ação ser, talvez, mais de organização do que de
execução de fato. Tal assertiva de minha parte toma maior corpo na fala do
personagem de Jean Carmet – Vincent Maheu dit Bonnemort –, partindo de uma notória
análise de discurso, na qual revela a situação de Étienne Lantier que "na
cristaleira Garbois ameaçam greves" (BERRI, 1993) pois, "falam em
baixar os salários" (BERRI, 1993) mostrando que mesmo que, se no ambiente
da mineradora em questão não se fizesse presente a intenção de greve, ao seu
redor tais discussões e intenções já fervilhavam. Assim sendo, o papel de Étienne
Lantier é de organizador e motivador, mas não de revolucionário central e
determinante.
O
filme, como um todo, mostrará quais as razões e motivações que levaram a classe
trabalhadora a optar por se articular politicamente e agir, no momento em que a
política pura, dentro dos formatos patronais, e formal não mais é possível para
angariar suas melhoras e conseguir mudanças em seu estado econômico e laboral.
Os processos que serão vistos nas próximas páginas condizem com um fenômeno
histórico visto até os dias atuais, em se tratando de movimento trabalhista,
obviamente, hoje muito mais organizado e politizado, assim como, estruturado do
ponto de vista burocrático, para a transformação da classe trabalhadora em uma
classe reconhecida e respeitada.
As condições adversas do proletariado no trabalho das minas
A
questão da luta de classes aparece bem nítida logo no início da trama. Fica
claro na obra a apresentação de suas contradições e antagonismos quando, por
exemplo, Vincent expõe a sua situação econômica a Étienne dizendo que "não
comemos carne todos os dias" (BERRI, 1993) ou, apresenta a situação constante
da periculosidade do trabalho de mineração revelando a Étienne que
"tiraram me daí três vezes feito pó uma vez com todos os cabelos
chamuscados, outra com a garganta cheia de terra e a terceira com o ventre
inchado cheio de água como uma rã" (BERRI, 1993). Sendo que a posteriori, o próprio filme
apresentará os burgueses em condição completamente distinta e, de longe muito
melhor como veremos nas próximas páginas. A situação é agravada no momento em
que temos a declaração do personagem Vincent ao afirmar que desceu pela
primeira vez nas minas quando tinha apenas oito anos de idade e que naquele
momento tinha cinquenta e oito (BERRI, 1993) mostrando que "a sociedade
burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos
das classes. Estabeleceu novas classes, novas condições de opressão, novas
formas de luta no lugar das antigas" (MARX et ENGELS, 1998, pp. 09-10).
Trechos
interessantes como a fala de Toussaint Maheu à sua filha, Catherine, revelam
que as observações de grandes teóricos dos fenômenos relacionados a formação da
consciência de classe pelos trabalhadores eram pertinentes. Maheu dirá a sua
filha que se ela "não tivesse dançado até tão tarde nos teria despertado
antes" (BERRI, 1993), expondo o que Thompson discutiu em sua obra "Costumes
em comum" e, nos leva a pensar a partir da percepção de tempo que tem
Maheu. Maheu desconsidera o lazer da filha – mesmo sendo um dia de domingo – em
detrimento de mais tempo de trabalho nos fazendo crer que tinha razão Thompson
ao observar "como o lazer se tornou um problema? O puritanismo, com seu
casamento de conveniência com o capitalismo industrial, foi o agente que
converteu as pessoas a novas avaliações do tempo (…) e que saturou a mente das
pessoas com a equação 'tempo é dinheiro'" (THOMPSON, 1998, p. 302).
Guardadas
as devidas proporções de tempo e espaço[1], parece-nos
lícito afirmar que a religiosidade, em certa medida, dividia as opiniões e
interpretações sobre o uso do tempo também na França, embora o filme, inspirado
em uma obra que tinha como maior foco de atenção a natureza e as leis
"naturais" que regiam o homem e a sociedade, como o próprio Èmile Durkheim defendia em seu mecanicismo, creio
eu, acabou por não captar…
Também
nos chamou a atenção o como os salários eram calculados partindo de uma
rigorosa atenção, por parte dos burgueses, às demandas mais imediatas dos seus
pretensos trabalhadores para que pudessem garantir exatamente, e tão somente,
aquilo do qual eles necessitavam para sobreviver e poder assim reproduzir a sua
força de trabalho e decrepitamente a sua prole, garantindo assim, mão de obra
para as gerações futuras de seus impérios industriais. Obviamente, este
fenômeno foi exaustivamente trabalhado por Edward Palmer Thompson em seu livro
"Costumes em comum" no capítulo seis[2] decifrando
alguns processos onde as resistências à nova concepção de tempo – do tempo
capitalista – ficam explícitas. Agora, segundo este autor, o tempo deixou de
pertencer ao ritmo e propensão dos trabalhadores e passou às mãos dos
capitalistas e dos seus gestores[3] – pessoas
que controlavam as ações dos executores das tarefas – a (no filme, também na
pessoa de Dansaert) que se empenharam em "disciplinar" o uso do tempo
e pagando também através dele.
Dentro
desta discussão, temos um interessante contraponto, a contradição do tempo
percebido em diferentes lugares sociais na relação trabalhador/empregador:
"essa medição incorpora uma relação simples. Aqueles que são contratados
experienciam uma distinção entre o tempo do empregador e o seu 'próprio'
tempo." (THOMPSON, 1998, p. 272) Fizemos estas discussões para enfatizar o
quão subjugados os trabalhadores daquele contexto histórico estavam aos
desmandos da dita "organização na divisão social do trabalho" feitos
pelos detentores dos meios de produção e seus gestores. Atentamos ainda que
este fenômeno ficou marcado na passagem supra mencionada da fala de Maheu para
Catherine.
Flagrantemente,
a família é grande, são dez pessoas, e as rendas não bastam, todos, em idade
produtiva estão envolvidos em atividades rentáveis (mineração) para, até onde fosse
possível, contribuir para a subsistência da família.
Para
além destes detalhes hermenêuticos e velados ou explícitos de máxima exploração
da força de trabalho da família de Maheu, mais à frente no filme, esta obra nos
apresenta a grande exploração de terceiros: crianças embarcadas em charriots para serem levadas para o interior
das minas, pessoas em geral em completo estado de degradação física e estética,
mulheres envolvidas na produção (extração do minério), condições precárias do
espaço de trabalho (minas perigosas, escoramentos frouxos, equipamentos pouco eficientes
na proteção, bolsas de gás) etc. Este cenário de plena exploração apresenta o
quadro de como a burguesia, através da detenção dos meios de produção, se
diferenciou histórica e economicamente dos demais grupos ou classes sociais.
Marx e Engels irão afirmar que devido ao foco e incentivos burgueses no
desenvolvimento de novas tecnologias que suportassem e auxiliassem a
intensificação da produção de bens de consumo e, sobretudo dos bens de capital,
mercantilizaram assim tudo o que lhes convinha. Assim,
este crescimento afetou novamente a extensão da
indústria; e, na mesma medida em que a indústria, o comércio, a navegação e as
estradas de ferro se estendiam, a burguesia se desenvolvia, aumentava o seu
capital e deixava para trás todas as classes provenientes da Idade Média (MARX
et ENGELS, 1998, p. 12).
Poderíamos
descrever muitos outros detalhes relacionados às condições dificultadas, para
não dizer subumanas, de trabalho do proletariado, contudo, o nosso objetivo
aqui é apresentar as razões pelas quais a classe trabalhadora revelou-se,
historicamente, a classe que antagonizou ao longo dos tempos a classe burguesa.
Notadamente, estes elementos de exploração e desumanização desta classe, como
visto nestes exemplos, constituíram-se em fortes razões para lutar não somente
por melhorias nas condições de vida, mas, com efeito, pela horizontalização das
relações de trabalho e sociais.
As condições de vida da burguesia detentora dos modos de produção
Em
contrapartida, temos uma apresentação bastante incisiva e diametralmente oposta
das condições de vida dos burgueses se comparada à situação econômica, social,
estética e política do proletariado, refletindo bem o que, ainda hoje, e
talvez, sobretudo hoje, pode ser percebido nesta paradoxal revelação da
produção cinematográfica.
O
filme traz à tona como a discrepância entre as duas classes, que à luz da
comparação mais parecem dois mundos, é grande. Um fosso seria talvez a mais
cabida expressão para distinguir as duas diferentes realidades.
O
cenário atribuído pela produção como habitat
natural da burguesia parece saído das descrições históricas da sociedade de
cortes de Norbert Elias[4]. A
área onde jaz a residência é deveras grande e requer um meio de transporte que
não as próprias pernas para se acessar a casa se não se quer chegar aí exausto.
O interior desta é extremamente luxuoso e traz elementos flagrantemente
supérfluos e requintados: cortinas estampadas para todas aberturas da casa,
decorações como pinturas, esculturas, flores e porcelanas abundam nos espaços.
Mobília confortável e bem constituída, lustres, faianças, charretes, animais de
tração e estimação, relógios (segundo Thompson, um artigo extremamente caro
àquela altura), cristais, talheres, roupas e vestes muito apropriadas e belas,
enfim, toda uma luxuosidade ímpar que bem descreve a realidade que sabemos
existir até os dias atuais.
Como
se esta imponência material não fosse o suficiente, a fatura em termos
alimentares vem corroborar o que a primeira vista, grosso modo, se faz notório. A diferença brutal e perversa do modus vivendi e da acessibilidade dos
burgueses a uma vida mais digna que a vida daqueles que lhes concedem a
condição desta dignidade – o operariado.
As
discussões voltadas prioritariamente para o lucro – caso do almoço entre as
famílias burguesas no filme – revelam a importância que davam as questões
sociais e de seus subordinados. Apenas tratavam de negócios, ações, e para não
ser de todo leviano, temos uma cena, entrementes as discussões sobre negócio,
onde ocorre que o seu rebento – aqui representada pela filha Cécile – cumprindo
sua função "social". Tal função consistiu em deitar migalhas aos
desvalidos e famintos enquanto os adultos se incumbiam de criticar a demasiada
fertilidade da indigesta visitante inesperada – Maheude.
A
única preocupação real de um dos acionistas da mina foi com o tempo de trabalho
de Maheude nela, negando-se a socorrer a representante da família com qualquer
que fosse a importância, apesar de tanto ostentarem e disporem em suas posses.
Para embasarem sua decisão de não ajudar financeiramente alegavam que já faziam
muito, e provavelmente já era o bastante pois, "a companhia lhes dá casa e
calefação" (BERRI, 1993).
As condições do pequeno comerciante pressionado bilateralmente
O
pequeno comerciante neste cenário se via, entre o déficit financeiro dos trabalhadores arrochados em seus ganhos e do
crescente aumento de produtos e bens de consumo que, como por consequencia,
aumentava exponencialmente a concorrência, que em geral, tendia a se tornar um
problema devido ao início de uma produção crescente que, em breve tornar-se-ia
uma produção de larga escala de todos os gêneros de bens de consumo propiciada
pelas novas tecnologias em desenvolvimento. Neste caso específico – da obra
cinematográfica, – o pequeno comerciante foi personificado em Maigrat, (embora
contemos também com o senhor Rasseneur, mais flexível por haver sido ele,
também, um mineiro) que se apresenta pouco propenso a atender as necessidades dos
trabalhadores em apuros devido, provavelmente, aos altos índices de recorrência
dessas necessidades "emergenciais". Contudo, a sua pouca propensão
não se traduz em nenhuma propensão, haja vista que ele sucumbiu ante as
solicitações de Mahuede fornecendo-lhe "(…) pão até o sábado, manteiga,
café, chicória até me deixou uns francos, por isso pude comprar carne"
(BERRI, 1993), mostrando que apesar de todas as dificuldades dos trabalhadores,
as classes mais próximas – os pequenos comerciantes – ainda apoiavam os
trabalhadores, na medida do possível, em suas dificuldades, mesmo que alguns
deles com algum interesse particular e objetivo (Caso Maigrat).
Dizemos
"bilateralmente pressionado" porque percebemos que, o pequeno
comerciante além de forçado a atender, em certa medida estas necessidades,
convivia com a possibilidade do surgimento de novos comerciantes que lhe
tomariam a freguesia descontente com sua pouca flexibilidade, (algo que fora
relatado e recomendado por ele mesmo). No caso do comerciante Rasseneur, ele
reconhece em diálogo com Maheu que, caso os valores dos vagonetes fossem, efetivamente,
reduzidos "haverá confusão" (BERRI, 1993), demonstrando discernimento
e propensão à causa trabalhadora. Ambos, em certa medida, apoiaram, de uma
forma ou de outra, a causa trabalhista. Há
ainda a necessidade de se esclarecer com maior precisão que os papéis de um e
outro, tal como retratados no filme, são bastante distintos. De um lado, temos
um comerciante que se utiliza de sua condição de fornecedor de víveres mais
próximo e provável que tenta em dados momentos obter vantagens sexuais das
mulheres. De outro, temos um militante político compreensivo e ponderado que
tenta contribuir com transformações em seu contexto histórico.
Um
detalhe bastante curioso que é apresentado no filme é como o senhor Maigrat se
propunha aberto a este tipo de negociação caso suas necessidades "emergenciais"
fossem também atendidas, fato este que, por fim, render-lhe-á um final bastante
incomum e inesperado, pois, o descontrole em parte dos integrantes do ato de
protesto, que é normal em manifestações, rebeliões, protestos e revoltas
acabaram tomando rumos adversos e coube-lhe, como em geral cabe sempre aos
pequenos, pagar pela ação dos grandes.
Problematização
Diante
destes dados e informações contidos no filme, percebemos que os elementos
necessários para uma insatisfação seguida de protestos contra todas as formas
de abuso e exploração do trabalhador já estavam dadas. É aqui, neste ponto, que
entendemos o que Marx e Engels disseram ao afirmar que a burguesia "não só
forjou as armas que trazem a morte para si própria, como também criou os homens
que irão empunhar estas armas" (1998, p. 19). Confirmando isto, Chaval, em
diálogo com outro trabalhador, expõe que "hoje nossos filhos já não têm
nada para comer. – É assim, aproveitam-se de nós. – Só nos resta aguentar. – E
ainda dois centavos a menos por vagoneta!" (BERRI, 1993) demonstrando como
os ânimos já estavam voltados para uma reivindicação mais presente e notória se
configurando nas armas da qual falava o manifesto.
Além
de todas as dificuldades para os trabalhadores e estímulos à revolta
trabalhista que vimos acima, a classe burguesa, pressionada pelas leis de
mercado, ao começarem a ver diminuir seus lucros, para mantê-los em níveis mais
aprazíveis para eles mesmos, resolvem que o ponto a ser reformulado deve ser o
bolso do trabalhador. Com esta medida, as dificuldades de conseguir crédito com
o pequeno comerciante, de manter a família minimamente alimentada, de obter
tempo livre para o lazer, dos perigos constantes no trabalho, das crianças que
perdiam sua infância no trabalho braçal, se apresentam, de forma cumulativa
como o último impulso para uma organização trabalhista mais incisiva.
Um
exemplo mais tocante de como os fatos se tornaram insustentáveis foi o momento
que, enquanto Catherine se esforçava para conseguir fazer com que os
trabalhadores da casa levassem comida para o trabalho, inclusive ela própria,
enquanto trabalhadora, e deixar comida para sua mãe e irmãos mais novos, além
de dividir sua pouca de comida com Étienne, ao passo que Cécile, a filha
burguesa dos proprietários da mina na qual a Catherine trabalhava, acordava ao cheiro
de brioches… Ou ainda, enquanto os
trabalhadores se organizavam para a greve em virtude da fome que passavam os
burgueses se banqueteavam com caranguejos e faisão… Ou seja, todo um fosso de
condições que impelia os fatos para o desfecho que presenciamos no filme.
Em
se tratando de problematizar a partir de um recorte temático e não se restringindo
apenas ao recorte espaço-temporal, faremos algumas analogias e aproximações
entre as análises do trabalho mineiro percebidas e anotadas por Engels sobre a
mineração inglesa e as exposições no filme Germinal. Primeiro podemos destacar o
aspecto da expectativa de vida apresentado no filme onde o senhor Vincent, que
havia iniciado os trabalhos aos oito anos de idade já vivia seus cinquenta e
oito anos, enquanto que na Inglaterra, os homens que iniciam sua vida laboral
precocemente nas minas não atingem o desenvolvimento
físico das mulheres que trabalham na superfície; muitos morrem ainda jovens,
vítimas de tuberculose galopante, e outros na meia-idade, em razão da
tuberculose lenta; é comum o envelhecimento precoce, que torna os homens ineptos
para o trabalho entre 35 e 45 anos; e muitíssimos operários, passando quase sem
transição do ar quente das galerias, depois de transpirar abundantemente na
penosa subida das escadas, ao ar frio da superfície, contraem inflamações
agudas nas vias respiratórias, de resto já vulneráveis, que levam habitualmente
a consequencias fatais (ENGELS, 2008, p. 276).
Piorando
o quadro, Engels denuncia a situação a partir de constatações médicas que nos
indicam que "a maioria morre entre 40 e 50 anos" (ENGELS, 2008, p.
277).
Segundo,
as estruturas são bastante parecidas no tocante ao espaço de trabalho onde numa
realidade e noutra, as minas são muito inseguras e os acidentes são constantes.
A presença de mulheres e crianças é observada em ambas as situações de trabalho
nestes diferentes espaços.
Terceiro,
tanto no relato de Engels como no filme Germinal, tivemos um personagem
aglutinador que organizou os manifestos e resistências da classe trabalhadora.
Nas anotações de Engels fora um "cartista que já se distinguira em
processos anteriores, o advogado W. P. Roberts, de Bristol" (ENGELS, 2008,
p. 286), já para a produção cinematográfica, fora o ex-maquinista do sul da
França Étienne Lantier, o personagem articulador das ações. Em ambos os casos
recorreram à greve como forma de mobilizar seus patrões no sentido de atender
as reivindicações no sentido de reverter o padrão de imutabilidade e
imobilidade social em que estavam emergidos naquele contexto.
Também, em ambas as (re)construções
fica explícita a descrença religiosa da intervenção divina, e que a intervenção
deve ser de fato feita pelas mãos dos próprios trabalhadores. Separação esta
feita com uma clara demarcação também na fala de Chaval que afirma que "o
operário reflete devido ao ensino, dantes nas minas, os avós faziam uma cruz"
(BERRI, 1993). Ou ainda quando Maheude tenta infrutiferamente ser acudida por
um padre transeunte no processo de convencimento de Maigrat. Apenas algumas
observações que não poderiam deixar de constar para uma leitura mais ampla do
momento histórico.
O(s) agente(s) deflagrador(es) da revolta
Todos os personagens da trama
atribuem a possibilidade de insurgência à redução dos valores pagos por
vagonetas retiradas – muito embora a redução do valor da vagoneta estivesse
diretamente relacionada aos escoramentos –, minimizando outros aspectos e
fatores de exploração como "os sistemas de moradias operárias […]
utilizado de modo a explorar mais o trabalhador" (ENGELS, 2008, p. 284),
como os sistemas de multas injustas e todos os outros elementos aqui
apresentados.
Obviamente, a redução do valor por
vagoneta representou uma afronta insuportável que, caso não fosse afrontada,
provavelmente o próximo passo dos proprietários das minas seria colocar rédeas
e montar nos mineiros para que com eles sob seus fundilhos pudessem
arregimentar a extração do valioso mineral. Contudo, não deve ser desprezado o
peso de todos os outros elementos já aqui apontados que servem como agravantes
e que, possivelmente, caso estivessem ausentes, a greve não aconteceria pelo
fato isolado da redução do valor dos vagonetes.
Esta afirmação está embasada não
somente na observação imediata da situação do operariado, mas, também, no fator
preponderante considerando que a "revolta do operariado reflete, assim, a
demonstração efetiva do seu sentimento contra a situação desumana do trabalho
fabril e de suas péssimas condições de vida aguçadas a partir do processo de
industrialização capitalista" (BIZERRA E SOUZA, ????, p. 115). Tal revolta
mostra-se possível apenas devido a todo o acúmulo de problemas envolvidos que
agravam as decisões patronais de reduzirem seus ganhos.
Ao perceberem os proprietários uma
organização mais delimitada por parte dos trabalhadores, como se vê no filme,
os burgueses temem, como também prevê o Manifesto, o fim da propriedade privada
(MARX et ENGELS, 1998, p. 27) e, sobretudo, a união consciente dos
trabalhadores com fins combativos com vistas a uma utópica (hoje sabemos) escatologia
da exploração do homem pelo homem (MARX et ENGELS, 1998, p. 29 – p. 41). Tal
efeito vê-se com nitidez na fala do representante burguês no filme o "senhor
Diretor" que acusa "essa internacional, esse exército de bandidos que
pensam em destruir a sociedade" quando se refere ao socialismo e prossegue
recomendando a Étienne que "se [ele] queres salvar as minas da podridão
socialista" que ele se enquadrasse nos moldes dos outros trabalhadores
(submissos) como tantos outros. O discurso redundante que lhes permite se
esconderem por trás da ideia de competição e da concorrência de mercado
precedem a dissimulação explícita de não desejarem partilhar seus lucros, ou
ainda à intencional criação das sociedades anônimas que oculta a verdadeira
face do responsável pela miséria de tantos trabalhadores, relegando os
problemas às leis naturais da economia e a esta atribuindo a razão dos
problemas de todos (BERRI, 1993).
No filme, quando Étienne clama a
atenção de todos para uma fala voltada para a união dos esforços onde a greve
funciona como o mecanismo político mais eficaz (BERRI, 1993) percebemos que o
que ocorre aí é a materialização da percepção histórico-filosófica de Marx
acerca da consciência de classe tal qual apresentada nas
condições precárias de trabalho e de reprodução
social em que se encontrava subordinado o proletariado, contribuíram para que
se despertasse a consciência de classe, para o sentido de pertencimento/de
identidade de classe contra a exploração/ a dominação burguesa (BIZERRA E
SOUZA, ????, p. 116).
E como bem vistas na produção fílmica de Berri nos
espaços de socialização descritos e trabalhados na obra, tema este que será
abordado em maior profundidade no capítulo seguinte.
Os espaços de socialização e organização dos trabalhadores
Os
bares, assim como os eventos populares, ao menos nesta obra, desenvolveram um
papel fundamental na organização e discussão das medidas a serem tomadas para uma
reivindicação mais organizada, objetiva e prática por parte dos trabalhadores
em sua luta por melhores condições de vida e de trabalho.
No bar apareceram algumas ideias
dos tipos de socialismo descritos no Manifesto Comunista por Marx e Engels. O
socialismo do pequeno negociante proprietário do estabelecimento senhor Rasseneur,
chamado pelos autores do manifesto de pequeno-burguês que propõe atenção às
discussões da Associação Internacional dos Trabalhadores - AIT; o radical, anarquista
na primeira cena do bar, ou na fala de Chaval após a festividade, no qual não
consegui enquadrar em nenhum dos tipos propostos pelo manifesto (parece que não
incluíram em suas discussões o anarquismo, ao menos no manifesto); e o mais
moderado, porém, não menos revolucionário na fala de Étienne que se opunha ao
radicalismo, em sua percepção, destrutivo e, como acabamos vendo no filme, um
tanto sanguinário do anarquista.
Já no evento popular tivemos
conversas da parte de Étienne sobre formas de organização econômica que
possibilitassem uma paralisação segura por parte destes trabalhadores, embora
seu ouvinte cresse que a submissão fosse talvez, o melhor caminho. Neste
momento, Etienne apresenta com maior ênfase a ideia de um caixa que servisse de
fundo tipo previdenciário que sustentasse e auxiliasse os trabalhadores em sua
opção por uma paralisação mais detida e sistemática.
Desta forma, notamos como outros
espaços que não o próprio espaço de atuação laboral contribuíram com a causa no
fomento de ideias e proposição de novos caminhos para os embates entre as duas
classes antagônicas.
As variadas formas de organização burguesa
O
personagem de Vincent aponta uma pista mais alusiva a uma discussão taxonômica
perceptível onde ele revela que a mina é "dirigida" pelo senhor
Hennebeau, ele não é o proprietário dela, indicando a terceira classe – a
burocrática, gestora, ou tecnocrática – comentada pelo professor Vinícius
Rezende, evidenciando uma espécie de sociedade anônima – caso da mina onde
trabalham Étienne e Maheu.
Há,
todavia, uma fala de Maheu onde ele propõe que a outra mina tinha um dono,
sendo ele o senhor Daneulin, e que nesta mina, onde o proprietário é apenas um
só, ele está tendo problemas econômicos.
Esta
complexificação das diferentes formas de organização da burguesia visou,
indiretamente – talvez inconscientemente –, mas, como visto no filme, bastante
eficazmente, dificultar as ações dos trabalhadores, uma vez que não se sabe,
neste tipo de organização burguesa, quem é o dono, pois funciona como uma
espécie de sociedade anônima. O filme também nos aponta o tipo mais simples de
empreendimento burguês onde se sabe exatamente quem é o proprietário. Neste
tipo, pode-se direcionar com precisão os protestos ao proprietário da
indústria.
Conclusão
Como
pudemos ver ao longo dessa discussão e ao longo do filme, as medidas mais
variadas de resistência e de organização foram efetuadas. Em alguns momentos as
greves não se generalizaram de modo a obter força e efeito suficientes para
fazer o patronato revisar suas condutas. Apesar das divergências entre a
própria classe trabalhadora – dos dissidentes da mina Jean-Bart – as
ferramentas foram criadas e desenvolvidas no sentido de proteger a classe
contra a excessiva exploração que se deu naquele contexto.
Movimentos
enxadristas por parte dos burgueses sempre foram sua especialidade. Como no
caso isolado de um possível líder revolucionário – caso Chaval – sempre
trataram de tentar corrompê-los antes que se tornassem significativos e é
também notório que tais medidas, ao serem percebidas por parte dos grupos
trabalhistas organizados conduziram a movimentos muitas vezes radicais. Tais
radicalismos sempre afetaram e atingiram, em primeira instância, os menores e
mais fracos na escala de uma sociedade capitalista e "aburguesada"
como capatazes, gerentes, administradores, comerciantes etc.
Isto se dá porque, os reflexos dos
feitos da classe opressora, os burgueses proprietários dos meios de produção,
sempre foram visualizados primeiro através destes arautos e porta-vozes da
miséria da classe trabalhadora, incorporando do ponto de vista simbólico, aos
olhos dos explorados, a razão de sua miséria generalizada. (BERRI, 1993)
Considerando
que o estágio de "alienação que induz ao trabalho compulsório em prol do
enriquecimento do capitalista, induz-nos a perceber que só se chega, de fato,
ao estágio de alienação quando o trabalho deixa de ser uma necessidade e se
torna um meio de sobreviver"[5]
(BADARÓ, 2010), pois, a necessidade de sobrevivência per se gera ações completamente imprevisíveis em ambos os lados
gerando excessos que impressionaram até ao mais positivo dos pensadores do
racionalismo e embebidos nas máximas do aufklarüng[6]
kantiano. Excessos estes que vimos bem expressos na obra cinematográfica de
Berri no caso de Vincent descarregando todo o seu amargor pelos sofrimentos
passados sobre Cécile, filha de burgueses na qual ele, provavelmente
personificou toda a estrutura simbólica tangível da opressão. Fazendo este tipo
de reatividade uma característica sui
generis das classes oprimidas em movimento de protesto contra todas as
formas de exploração experimentadas. Não se quer com isto justificar atos
atrozes, mas, apenas apontá-los como características historicamente
verificáveis daqueles que se encontram não somente em condição de subalternidade,
porém, e sobretudo, em condições extremas de expropriação de seus direitos mais
básicos e humanos.
Como
conclusão, percebemos ainda que, em virtude de uma articulação política que
apenas visa a demagogia como vertente, o estado negou a leitura de que Foucault
faz da função do estado como aparelho regulador da sociedade. Aqui apenas
aparece o estado com a intenção de amaciar os corpos e "docilizar" os
homens, pois, como percebemos no filme, os únicos "docilizados" e
amaciados pelo teorizado poder instituído do "contrato social"[7] de
Rousseau foram os trabalhadores famintos e não os sedentos e mesquinhos
burgueses algozes que, por sua vez, hostilizaram e oprimiram as classes trabalhadoras
com as piores condições possíveis para a execução de suas tarefas. Estes sim
mereciam ter seus corpos "docilizados" pelo estado. Ou seja, uma
"docilização" bastante tendenciosa e unilateral.
Por fim, a gênese da formação da
classe trabalhadora não resolveu as diferenças e nem aboliu os problemas
inerentes às relações de trabalho exploratórias e predatórias da classe
burguesa, ao menos no contexto que vimos no filme e nos textos propostos pelo
professor, contudo, demonstrou que suas conquistas foram concretas e são
sentidas até os dias atuais. Além disto os seus exemplos, com muita certeza,
mostrou-nos o caminho histórico que deve ser seguido, aprimorado e executado
pois, os burgueses, de acordo com os últimos fatos dos protestos na sociedade
brasileira, ainda tremem e "não dormem com medo dos que não comem". (Josué
de Castro)
________________________________________________________
Bibliografia
BADARÓ,
Wilson Oliveira. Modelo de Fichamento de
Sociologia 2. Cachoeira, 2010. Disponível em:
acesso em: 15 de outubro de 2013.
BIZERRA,
Fernando de Araújo e SOUZA, Reivan Marinho de. A organização política da classe
operária do século XIX. Revista Online
do Museu de Lanifícios da Universidade da Beira Interior. O artigo pode ser
encontrado no endereço que se segue. Disponível em:
acesso em 13 de outubro de 2013.
ELIAS,
Norbert. A sociedade de corte: investigação
sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. – Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2001.
ENGELS,
Friedrich. A situação da classe
trabalhadora na Inglaterra. São
Paulo: Boitempo, 2008. Exemplo eletrônico disponível para consultas no endereço
eletrônico que se segue. Disponível em:
acesso em: 13 de
outubro de 2013.
KANT,
Imanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Tradução: Leopoldo Holzbach.
São Paulo, SP: Martin Claret, 2005.
MARX, Karl e
ENGELS, Friedrich. O manifesto
comunista.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
QUINTANEIRO,
Tânia. Um toque de clássicos:
Durkheim, Marx e Weber. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1995.
ROUSSEAU,
Jean-Jacques. Do contrato social.
São Paulo: Abril Cultural, 1978.
THOMPSON,
E. P. Costumes em comum. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
Filme
GERMINAL.
Direção: Claude Berri. Renn Productions, 1993. 1 Arquivo wmv de 151 minutos e 48
segundos.
[1]
Sabemos que o fenômeno que Thompson observa tem fontes bastante abrangentes e
relacionadas com boa parte da história de povos de todo o mundo, contudo, não
se pode negar a influência cultural que os huguenotes imprimiram nos
comportamentos e mentalidades francesas desde o século XVI. Além de uma
tradição protestantista, reconhecidamente revolucionária em relação às
tradições vigentes e historicamente passadas e construídas a partir de
representações coletivas, o contrariar das máximas católicas, trouxe, segundo
análises weberianas, um novo comportamento laboral que defendia o trabalho e o
tempo produtivo como dádivas de Deus.
[2]
THOMPSON, Edward P. Tempo, disciplina de trabalho e o capitalismo
industrial. In: __________. Costumes em comum. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
[3]
Embora este conceito não tenha sido usado por Thompson, tomo aqui emprestada a
ideia explanada pelo professor doutor Vinícius Rezende da aplicabilidade e da
possibilidade da existência de uma terceira classe para além das duas classes
propostas inicialmente pelo marxismo.
[4]
Para maiores informações veja: ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e
da aristocracia de corte. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
[5]
Reflexão disponível em blog acadêmico discutindo detalhes sobre os clássicos da
sociologia. Tal reflexão é inspirada nas discussões de Tânia Quintaneiro na
obra Um toque de clássicos disponível na bibliografia deste trabalho.
[6]
Conceito Kantiano relacionado com a ideia de ilustração ou iluminação do homem
a partir dos processos de racionalização ou de maior entrega do homem às
questões da razão enquanto motivadores das ações humanas. Cf. KANT, Imanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes
e Outros Escritos. Tradução: Leopoldo Holzbach. São Paulo,
SP: Martin Claret, 2005.
[7]
Ideia de que aceitamos que o estado seja o único usuário da força como forma de
organizar a sociedade e mantenedor das leis vigentes em prol de uma maior
harmonia entre os seus membros desta. Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do
contrato social. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
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